quarta-feira, 14 de novembro de 2007

sábado, 10 de novembro de 2007

Ars Quarta

[Jorge Ben Jor - Os Alquimistas Estão Chegando]

O meridiano dessa compilação, por fim, onde metade dos tópicos passaram-se e outra metade está no porvir, a arte de escutar é de uma contraditoriedade estupenda, a maior parte dos que a citam representando a antítese do que ela versa.

Se a terceira arte é a mais vulgarizada, a quarta é a mais lembrada e, simultanea e algo não surpreendentemente, a menos empregada. De fato, a lógica simples e racional nos dita que, em um mundo onde todos são incentivados a falar o que pensam, poucos são aqueles que recebem as instruções corretas para escutar.

Perceba-se que, se por um lado, ler é compreender não apenas o que está escrito nas linhas e letras, mas também nos pontos e nos espaços em branco, escutar não é apenas absorver e analisar cada palavra dita pelo seu interlocutor, mas também as pausas e as intonações. Para proceder nesta examinação, parece útil montar correlatos entre a segunda e a quarta arte, ler e escutar.

Ao ler um romance, por exemplo arbitrário, para compreendê-lo melhor, ter uma idéia decente do contexto da época, dos valores e da moral vigentes, fornece uma grande ajuda. Analogamente, saber um pouco sobre o estado de espírito e das virtudes e ética seguidas por quem fala auxilia a entender a mensagem.

Livros são, de fato, produtos da mente humana, mas, ao contrário das falas, são pensados, editados e cuidadosamente planejados. Deste modo, embora categorizá-los em gêneros, como relativistas, absolutistas, modernistas, classicistas, simbolistas ou espiritualistas, dê uma noção do que tratam, não é possível afirmar com exatidão que idéias você encontrará ali até lê-lo realmente e, talvez, até relê-lo.

Isto posto, diálogos com pessoas poderiam ser classificados, em tese, do mesmo modo, a partir da pessoa que fala, pessimista, otimista, realista, analista, subjetivista, misticista, abstrativista, se mentes humanas fossem exatas, com limites bem-definitos e sem a contínua possibilidade de mudança súbita ou gradativa de opiniões. Em outras palavras, escutar uma pessoa com um pré-conceito simplesmente não dá certo e, se uma pessoa insistir nisso, somente vai prender-se nos níveis mais baixos desta arte.

À medida que se progride nos ensinamentos desta linha, vê-se que, como com autores e livros, escutar melhor seus pares e opostos, isto é, tentar escutar todo tipo de pessoa, fornece-lhe uma gama quase irrestrita de conhecimentos em relação a objetivos ocultos e segundas ou terceiras intenções em cada frase, assim como no recurso de certas figuras de linguagem e lugares-comum.

Cabe, nesse instante, notar algo muito interessante: enquanto alguém pode melhorar, permanecer no mesmo lugar ou piorar na arte de ler, dependendo do objeto em que ela é aplicada, a arte de escutar sempre é aprimorada quando praticada, independente do momento. Sendo assim, seria de se esperar que ela fosse, entre aspas, "a mais fácil de todas as artes a ser dominada". Ledo engano, ou ainda, engano crasso e grave. Se esta arte sempre melhora, ela apresenta uma limitação forte em compensação.

Depois de muito escutar, atinge-se o patamar que pode ser considerado como máximo, onde você está apto a compreender quase tudo o que alguém diz. E a chave e o segredo para isso está precisamente na palavra 'quase'.

Em equações diferenciais, um tópico de Cálculo Diferencial e Integral, o estudante primeiro aprende a reconhecer a forma geral da resposta, com constante desconhecidas e escopo muito abrangente. No entanto, essa solução geral não serve como conclusão final. Para isso, é preciso buscar a solução particular dentro da geral.

De forma semelhante, a arte de escutar é, juntamente com a sexta arte, ligada intimamente ao conhecimento do objeto analisado. Quanto melhor você conhece a pessoa com quem você interage, muito melhor será sua perícia nesta quarta arte. Portanto, talvez ironicamente, por ser capaz de aprimoração contínua, esta é restrita, e o cume só é atingido em alguns casos específicos.

Isso não significa que escutar é uma arte menor do que as outras cinco, mas que apenas é uma mais seleta. Não há razão para preocupação, pois é tão raro atingir esse nível onde apenas a intimidade permite compreender o que não poderia ser captado por conhecimentos gerais na arte que, no final das contas, não interessa, de verdade, chegar a esse local com algumas pessoas bem-quistas, o que completa o ciclo e a torna tão perfeita quanto todas as outras.

[Tim Maia - Você]

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Ars Tertia

A pergunta bem poderia ser "falar ou não falar, eis a questão?". A terceira arte, a da fala, é uma muito vulgarizada na nossa auto-proclamada sociedade do conhecimento. Novamente ignorando casos óbvios, todo humano atinge um nível inicial nessa área e utiliza-a desde o momento em que acorda até aquele em que cai em inconsciência.

Como mencionado en passant, como dizem os franceses, as primeira e segunda artes são limitadas em seu escopo - apenas uma parcela chega a conhecê-las. Falar, porém, é tão natural e modo tão mais prático de se comunicar que somos incentivados desde o primeiro dia a balbuciar qualquer som.

Talvez por isso mesmo, a tanto não me compete analisar agora, essa seja, de todas as artes, a mais corrompida e desfigurada. Se existisse um contador como esse ao lado para o número de vezes que uma palavra é arremetida no saco das pronunciadas erroneamente ou uma expressão é usada em lugar tão errado que ao interlocutor só resta ignorar o engano, para não causar um grave constrangimento, ele atingiria o primeiro milhar em espaço de tempo mais curto do que o que você levou para chegar até essa palavra aqui.

Na discussão em certa medida interessante sobre qual é o verdadeiro idioma, o falado no cotidiano ou o sacramentado pelas normas da língua, a divisão entre baixa linguagem e alta linguagem torna-se nítida como nunca. Apesar de não ser regra mágica sem exceção, pessoas cultas e literatas costumam utilizar esta enquanto os mais simplórios recorrem àquela.

O domínio da arte de falar é tão vasto que seria possível subdividí-lo em dois propósitos, transmissão e argumentação - todos o arsenal de recursos empregado para subjulgar a vontade alheia e demonstrar que a água, na verdade, é vinho, pertence ao subconjunto da argumentação; o que sobra, técnicas mínimas e comuns para comunicar um desejo ou uma informação reúnem-se na categoria da transmissão.

É, de fato, muito defensável essa postura. Eis que, no entanto, é uma defesa pelo prazer da discussão, pois que é uma falácia: a arte de falar é uma só e, dessa forma, seu domínio é uno. O que pode existir, claro está, são especializações em um ou mais estilos de fala, mas nunca totalmente separados.

Se alguns incorrem na falha do erro crasso, outros caem em armadilha muito pior: são tão verborrágicos, em sua tentativa de brilhar, que terminam por impressionar apenas os mais suscetíveis e menos atentos, aqueles que compreenderam sequer dois períodos do discurso. É bom lembrar que toda palavra tem um significado e, muito embora, ela tenha o sentido que você quer dá-la, independente de ser um que nunca havia sido proposto antes, em sua forma normal, cada uma delas tem seu momento.

Três profissões são notoriamente conhecidas por seu jargão intrincado e, por vezes, completamente desnecessário: os que optaram pelo Direito, uma nobre e, maliciosamente, pérfida carreira, e seu legalês, jogos intermináveis de arcaismos e locuções latinas com o fim único de montar, de facto, um idioma dentro de um idioma; os que se entregam à mais nobre das escolhas, os médicos, escravos, por vezes, de seus termos técnicos; e os que deveriam ser reis, filósofos e pseudo-filósofos, que buscam conceitos tão díspares e tão variados que podem se perder no labirinto de idéias formado.

Talvez seja tempo de lembrar que não penso, quando discuto nossa pauta, nos discursos escritos e preparados de antemão. Não insinuo que não sejam formas válidades de se expressar, visto que algo pensado e ponderado é, muitas vezes, extremamente eficaz e eficiente, mas é apenas uma transfiguração da primeira arte na terceira e não verdadeiramente um exemplo desta última.

Atingir graus elevados nesta arte requer prática, paciência e, não obstante, níveis na sexta das artes, algo que será discutido mais à frente. Até certo ponto, esta arte caminha sozinha, sendo exigido do praticante apenas que reflita sobre o que falou e que busque uma personalidade própria para suas frases. Atingido o limite, a influência de escrever e ler são tão tremendas que avançar sem elas é tarefa hercúlea, reservada para os obstinados e, sem o resquício da dúvida, idiotas.

Falar com emoção genuína também faz parte da transição entre os graus - uma teoria dita monotonamente pode ser perfeita hipoteticamente, mas causa efeito nenhum ou pouco na prática. O interlocutor consegue percebe o estado de espírito do que profere as frases e, nas relações humanas, o morno é repudiado. Emular emoções, produzindo-as a fim de gerar um impacto de interesse, é válido também, e lembra da grande vantagem da fala sobre a escrita - enquanto escrever é quase uma ciência exata, letras impressas são incapazes de transmitir todos os sentimentos que uma só palavra dita.

Há muito mais a ser escrito e dito sobre esta arte, mas temo que o conjunto de explicações para essa parte seja complexo demais para agora, tanto para mim quanto para quem parte só do que eu escrevi. Assim sendo, postergo esse pedaço para uma outra ocasião e, assim como a arte da leitura é o oposto da arte da escrita, a quarta arte é o reflexo da terceira.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Ars Secunda

Se a primeira das artes trata do domínio da codificação das idéias e dos sentimentos, a segunda arte cuida da outra ponta, a interpretação e compreensão de tudo que é escrito, as duas ensinadas simultaneamente nos dias que vivemos, a arte da escrita e a arte da leitura.

Para nós que a exercemos todo dia, a leitura pode parecer fácil, simples e natural, mas não o é. Percebam que aqueles incapazes de relacionar letras a fonemas e fonemas a palavras estão cercados de símbolos impossíveis, repetidos de maneiras díspares, uma multitude deles os rodeando e oprimindo. A prisão dos iletrados é tão cruel que eles passam os dias vagando entre tantas oportunidades de melhorarem e não as realizam porque não as lêem.

São absolvidos de qualquer culpa, portanto, de ingenuidade e incapacidade de raciocínio amplo, já que nasceram mortos para esse mundo, não, universo paralelo a que temos acesso sem pensar. Incorre em falta temível aqueles que têm a capacidade de leitura e as desperdiçam com nada ou coisa pior, pois há pior do que o nada, que apenas é o intermediário entre o bom e o ruim numa escala.

À primeira vista, ler e interpretar as palavras de outrem é tão simples quanto, bem, ler esse texto. Conhecendo todas as palavras, ou buscando no dicionário aquelas que não pertecem à sua memória, você certamente está apto a compreender tudo o que o escritor colocou no papel.

Finitos são os números que podemos pensar e, ainda assim, infinitas vezes mais são as interpretações cabíveis em uma palavra. Numa analogia simplória, sem a chave certa, você apenas vai especular sobre o que está além da porta. Igualmente, sem o retrospecto mínimo, sua compreensão será risível, se não prejudicial a si mesmo.

Veja que a arte da leitura talvez tenha ainda tantos níveis a mais do que a arte da escrita, posto que nem passando todos os minutos de sua existência efêmera lendo você seria capaz de passar uma vez só os olhos por cada letra de todos os livros ao menos medianos já escritos. Se nem os mais importantes e os clássicos damos conta de ler, que dirá essa quantia quase inimaginável.

A arte da leitura, assim como a arte primeira, se beneficiam da prática. Quanto mais você a exercita, melhor você fica nela. Contudo, a arte segunda é talvez ainda mais rica - dependendo do que você lê, sua capacidade se amplia em uma ou outra de n direções existentes. Acompanhar uma revista fútil por tempo demasiado pode até lhe tirar um grau ou mais em certa área.

Para entender Nietzche, por exemplo, há que se ler Nietzche; mas para realmente entender Nietzche, há que se ler Nietzche, Spinoza, Kant, Platão, Proust... a arte da escrita é cíclica e pode tanto tomar o rumo do ciclo virtuoso como o do círculo vicioso.

Uma observação cabível aqui é que enquanto a arte segunda influi na primeira, o contrário é verdadeiro muito restritamente. Escrever auxilia, sim, entender certos aspectos de outros escritos, mas tão limitadamente que somente os melhores escritores podem se beneficiar em um nível noticiável.

Seria sábio, portanto, pensar com cuidado o que se faz. Ler por ler vai causar tanto dano que pode levar tanto tempo para revertê-lo que até o maior ânimo decairá. Errar é humano e é por isso que somos, em grande parte, medíocres.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Ars Prima

Em termos muito gerais, existem seis formas normais de comunicação: falar e escutar, escrever e ler, mostrar e ver. Cada pessoa tem um nível de competência em cada uma desses modos de interação com o resto do mundo. Não existe um grau de diferenciação entre as seis e a ordem imputada por mim não desmerece a quarta em relação à segunda, apenas é a ordem pela qual eu pensei nelas.

A primeira dessas formas, um método extremamente eficiente de transmissão de pensamentos, a escrita foi organizada pelo fim do quarto milênio antes de Cristo, quando a necessidade de manter registros encontrou um limite na nossa memória. Desse ponto primevo, a evolução encontrou muitos becos-sem-saída até seguir pela via alfabética, chegando aos vários que utilizamos hoje.

Contudo, não é sobre a história da escrita que quero digitar, mas sobre a arte da escrita. É dito que toda a atividade humana tem uma arte correspondente, um conjunto de métodos e conhecimentos que tornam o praticante mais capaz naquilo.

Em geral, aprendemos a escrever entre os quatro e seis anos de idade e, desde esse momento, continuamos a rabiscar em folhas de papel, carteiras, paredes, braços, cartolinas, camisas e quaisquer outras infeliz superfícies que estiverem na outra ponta de nossos lápis, canetas, lapiseiras, compassos ou canivetes, rabiscos esses que serão obliterados pelos mais infelizes ainda responsáveis pela limpeza e manutenção dessas tais superfícies.

Como toda a arte, existem pessoas que nasceram com um talento nato. São os poetas e os escritores de prosa, os jornalistas e os articulistas, seres que receberam na sua quantia de valores a capacidade de escolher palavras melhores do que as selecionadas pelos medíocres.

Chegamos aí a um ponto fundamental dessa arte: a palavra, ou melhor, o vocabulário. Um bom escritor precisa ter um vocabulário extenso e abrangente. Quanto mais palavras ele conhece, melhor ele é capaz de comunicar seus sentimentos, suas idéias ou suas ações. Quem não souber o significado de opróbrio não pode chamar o Brasil de "terra do opróbrio", como Lya Luft, ou ignorar canhenho não define com exatidão seu caderno ou seu blog.

Se as palavras são instrumentos cruciais, a escolha delas é o túnel que separa aqueles que poderiam ser grandes dos que são. Um escritor pode escrever para si mesmo e ser feliz e aclamado dessa forma. Talvez ele seja representativo de seus próprios leitores. Via de regra, o escritor deve ser simples quando assim o leitor exige e deve exibir todo seu domínio sobre o vernáculo quando o objetivo é não só ser compreendido, mas entendido a ponto do que lê se sentir imerso no mundo das idéias e pensamentos do que escreve.

Portanto, erro comum é ser complexo quando o simples basta e ser simplório quando uma palavra errada desvia a seta e o objetivo termina incólume, inalterado e incompreendido.

Não obstante, palavra e seleção são ferramentas e de quê elas servem se não houver propósito atrás do manuseio? Um escritor sem idéias e conhecimentos variados é como um carpinteiro que só sabe fazer um tipo de cadeira: ótimo por 10 dias, depois unicamente inútil. Um romancista incapaz de pensar em Machado de Assis, Gabriel García Marquez, Dostoiévski e Somerset Maugham é tíbio. Que dizer, então, do que expõe suas idéias sobre moral, bem e mal e sequer toma nota do moralisch Zeitgeist?

Os mais altos graus de domínio na arte da escrita só podem ser contemplados após a elevação a um grau correspondente, superior ou inferior, na ars secunda, a arte da leitura.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Clamor interno

[Green Day - Holiday

Inspirado por: aqui ]

Imagine pela duração desta leitura que possuímos uma série de corpos em camadas sucessivas. Numa delas, no campo das idéias e dos pensamentos, o que corre pelo nosso corpo no lugar do sangue é o instinto. Não é àquela vontade animal que me refiro, mas ao produto do atavismo, à herança dos nossos genes e do nosso solo.

Somos todos brasileiros e isso, de algum modo oculto e místico, causa efeitos em nosso comportamento e nosso raciocínio. Não, não é devido à maneira com que somos criados, ao que somos expostos desde criança, violência e miséria, descaso e corrupção, festejos e lamentos, não, é algo ulterior, incomensurável por estar envolto por o tal véu que distorce a visão dos homens sãos e racionais.

Entre muitas coisas que esse brasileirismos nos concede, coisas boas e coisas más, existe um clamor interno que grita e arde desde os momentos em que tropeçamos nos primeiros passos até o fim, quando tombamos inertes, nada mais do que o repositório de lembranças, um brinquedo cuja corda se rompeu.

Esse clamor é o autoritarismo. Todos nós acreditamos que temos a solução para o Brasil e para o mundo. Somos todos certos, temos a visão necessária e fosse nos dada a faculdade da decisão geral, levaríamos o país ao seu lugar de direito. Empunhamos a bandeira da democracia, mas reservamo-nos o direito de pensar secretamente que a maioria é estúpida e que o certo seria seguir nossa linha de raciocínio. Quem discorda de nós é impatriota, é néscio, nós que sabemos, nós que queremos o bem, eles, o mal.

Sou brasileiro também, sinto essa voz aos berros em meus ouvidos cada vez que vejo, ouço e presencio ações idiotas e vis oriundas de cima e de baixo. Não nego que acredito que minhas idéias sejam melhores do que as de quase todo mundo ou que tenho a solução para nossa terra, seria mais do que hipocrisia, seria contra o meu princípio-mor.

Porém, mesmo eu, portador dessa pira cujo fogo nada mais é do que a vaidade, sei que a tolerância é a medida que me impede de me consumir e queimar por um segundo, não mais, e apagar-me para sempre. Escutar a opinião dos outros e considerá-la sob todos os prismas e todas as luzes, procurando defendê-la contra sua própria visão é um exercício não necessário, mas vital.

Calem-se por um longo tempo, retenham o fluxo do atavismo que nos corre o corpo e escutem os outros, mesmos os que deprezam. O único que não precisava fazer isso já morreu há mais de dois milênios.

[Preparar o terreno 1/5
Pearl Jam - Black]

domingo, 4 de novembro de 2007

Pelo Portal das Correntes

[Now playing: Vanessa da Mata - Música
via FoxyTunes ]

Sendo isto uma espécie de diário virtual, melhor seria um canhenho virtual, acho que cabe um relato de uma experiência pelo mundo "de verdade".

No Dia de Todos os Santos, resolvi eu, acompanhado por minha inspiração, atravessar o Portal das Correntes: uma apresentação de bandas covers locais de rock. Confesso que não assisti a tudo e que fui afetado drasticamente pelo volume das caixas de som e pelo ritmo contundente, ou ainda, agressivo da música. Porém, aquele que quer conhecer o mundo deve conhecê-lo por inteiro. Parece óbvio, mas não é tanto assim.

Não vou discorrer aqui sobre todos os fatos que lá se sucederam, sobre pessoas que encontrei, mas sobre eventos mundanos que presenciei, que é o que mais me interessa.

O volume da música parece ser de caráter fundamental. Quanto mais alto, mais se sente, fisicamente, as vibrações dos instrumentos, chegando ao ponto do absurdo, onde seu próprio corpo entra em ressonância com as caixas de som. De alguma maneira alienígena a mim, os entusiastas do tal estilo parecem movidos a esse vibrar e se posicionam ao lado das caixas de som. Uma observação talvez pertinente é que depois da terceira ou quarta vez, muito provavelmente a audição já está reduzida a níveis confortáveis, embora não possa afirmar com certeza.

O ritmo das canções deve ser ao mesmo tempo elaborado e simples. Como uma banda permite os dois atuarem conjuntamente, o resultado é uma sinergia admirável, com uma parte da formação se encarregando do que calhei de pensar por base, a batida simplória, mas eficiente, e um ou dois integrantes, provavelmente mais experientes ou habilidosos, encarregados de toda a elaboração. Outra nota interessante é que a velocidade das notas também parece influir e ampliar o efeito.

O vocalista serve como catalisador e organizador de tudo isso. A voz é como um sineiro cuja função é apontar o caminho, corrigir desvios, guiar o público e os instrumentalistas e determinar variações próprias do original.

Curioso é que, apesar da qualidade da banda cover ser relevante, não é tão relevante quanto cover do quê ela é. Fãs de Queen, por exemplo, suportariam uma banda mediana que tocasse os melhores sucessos, embora intimamente eles sejam críticos ácidos e, obviamente, têm uma lista extensa de vários graus onde a cópia é incomensuravelmente [mas mensurável, ainda assim] inferior ao original.

O que mais me chamou a atenção, contudo, foi uma espécie de ritual próprio desse gênero e cuja compreensão é tão absurda que só consegui montar um esboço: a "rodinha". Vários adolescentes, de idades variando de 15 a 25 anos, provavelmente, se atingem mutuamente com golpes com o cotovelo basicamente, jogando-se de um lado para o outro por algum tempo. Ao redor, outros que ou atiram alguns de seus colegas/oponentes ou se movimentam ao centro prontos para entrar no meio da confusão que se instala. A única coisa que me veio à cabeça, confesso, foram homens primitivos e uma tentativa pífia de demonstração de força e masculinidade. Ou talvez seja algo mais sofisticado, mas inerente aos membros dessa classe. Misterioso, de fato.

[Now playing: Mama Cass Elliot - Make Your Own Kind of Music
via FoxyTunes ]

A Sua Música

[Now playing: Titas - Sonífera Ilha
via FoxyTunes ]


Toda pessoa, geralmente falando, tem suas músicas prediletas. Suponho que seja raríssimos aquelas que tenham somente uma ou sequer alguma, então, para propósitos de discussão, ignoro os casos particulares, posto que a solução mais abrangente é a mais eficiente para didática.

Elas podem ser da mesma pessoa ou banda, do mesmo gênero musical ou de origens diversas e difusas. Podem ser músicas cujo nome você desconhece, um trecho apenas que você escutou na carona com um amigo ou aquela canção que sua mãe cantava com você quando todo o mundo se resumia ao quarto dela e o perfume da roupa de cama bordada com flores.

Independente de quaisquer fatores, algo não muda: entre as suas prediletas, haverá uma ou mais com as quais você se identificará ainda mais fortemente. Elas seriam as suas músicas ou, no caso de uma mais única ainda do que as outras, a sua música.

Eis que, na realidade, isso não passa de uma ilusão: uma música só define com perfeição os sentimentos de quem a compôs. É amarga a realidade, mas o que se há de fazer? A não ser que você componha uma para si mesmo, jamais existirá a música que lhe contenha.

O argumento contrário a isso, óbvio, é que existem músicas que, segundo Milton, "me pergunto como não fui eu que fiz". Porém, mesmo a música com a qual você melhor se relacione é adaptada pela sua mente para que você se reconheça ali. Talvez ignorar aquele verso sobre o ódio em relação ao mundo ou como sua mãe foi embora. No limite, tentar agir como o eu-lírico da canção. Não importa, aquele não é você e, não, aquela não é a sua música.

Bem-aventurados os artistas que podem fazer para si réplicas sonoras, escritas ou representadas. Amaldiçoados os artistas que nunca conseguem fazê-lo com perfeição e sempre buscam algo mais.

[Now playing: Rolling Stones - Sympathy For the Devil
via FoxyTunes ]

sábado, 3 de novembro de 2007

Letra e Ritmo

[Now playing: Jack Johnson - Banana Pancakes
via FoxyTunes

Não me julguem! O quê, não posso ouvir uma coisa sem uma letra profunda de vez em quando?]

O título vem de um filme com o Hugh Grant, muito bobo e, diga-se de passagem, alguém precisa falar pro Hugh que ele tem, de fato, um charme inglês, mas que os personagens deles são todos iguais e que isso cansa. É ou não é?

Uma pessoa pode gostar de uma música por alguns fatores intrínsecos ao ser humano. Não posso aqui elencá-los todos, mas posso analisar alguns.

O primeiro fator, o mais abstrato de todos e menos compreensível, pode ser resumido em uma palavra geral: energia. Existe alguma ligação de grau inferior ou superior que está um pouco além do alcance da ciência de nosso tempo [talvez sempre estará] que indica se você é afinado com a tal música ou não. Pode até ser de uma banda com a qual você não tenha total simpatia. Por exemplo, Los Hermanos. Com essa, eu tenho pouca ou nenhuma conexão, mas, ainda assim, admito que me fascinei pela letra de uma das músicas deles. Qual? Pratiquem sua mantéia.

Tirando esse elemento sobre o qual não posso falar realmente, temendo que minha capacidade de análise não chegue a tanto, passamos às duas causas principais pelas quais uma pessoa pode gostar de uma música: ritmo e letra.

O ritmo é a melodia, a batida, a maneira como o cantor pronuncia ou deixa de pronunciar sílabas e palavras. Ele tem um papel primordial porque é dele que você vai se lembrar em primeiro, de uma forma bem mais instintiva do que qualquer coisa. Até os desprovidos de talento musical, eu primeiro da fila, conseguem murmurar ou batucar alguns acordes de canções que acabaram de ouvir e que nunca antes tinha escutado, seja um Bolero de Ravel ou um Mantra.

Opostamente [talvez seja sábio lembrar-me de como é comum dividir a maioria das coisas em opostos... Aristóteles comentou algo sobre isso], pode ser a letra a lhe enfeitiçar. Certos artistas têm o dom de colocar em palavras, simples ou ornadas, sentimentos. Uma verdadeira transmutação alquímica, acredito eu, um correlato com os pintores que lançam em suas telas o terror e a surpresa, por exemplo. Claro, isso não é exclusividade da letra, o ritmo também o faz, mas, quando não se tem a habilidade musical, às vezes, é mais fácil compreender e fazer entender uma música pelas palavras do que pelos sons quase abstratos. Além disso, talvez você seja um dos que se enamorem de uma construção gramatical em específico, da utilização desta ou daquela característica de sintaxe. Ou, por último, você simplesmente lê [ou escuta] a letra e acha que ela passa uma mensagem competente [não precisa sequer ser boa].

Existem músicas que o fisgam pelos dois. São músicas especiais, concebidas sob condições variadas, sem aparente nenhuma ligação [acredito que deva haver uma, não a conheço]. No Brasil, Vinícius, Tom, Chico, Gil, Caetano e Milton são alguns dos que já fizeram uma dessas.

Não é necessário que a música tenha todos os elementos em grau de excelência. Às vezes, você quer apenas o ritmo. Outras vezes, a letra se sobressai à melodia. Não existe melhor ou pior aqui. De fato, com uma ponta de derrota, admito que é questão de gosto.

Como última nota, convém comentar que o ritmo é um canal mais poderoso de emoções. Essa é a razão pela qual as músicas clássicas são colocadas em um patamar tão elevado. Posso soar elitista, mas nem todos conseguem compreender isso e, sim, isso representa que algumas pessoas são piores do que as outras nisso e, em específico, nisso. A lei do equilíbrio universal dita que, no final das contas, somando-se as habilidades e faltas das mesmas, todos são similares.

[Now playing: Yoko Kanno - Call Me Call Me
via FoxyTunes ]

O Seu Estilo Musical

Todo mundo tem seu próprio estilo musical. Algumas escolhem um cantor só, por exemplo, Frank Sinatra ou Roberto Carlos. Em geral, pessoas que tiveram uma vida mansa e gostam de ficar em casa ouvindo o som de uma voz melodiosa e uma letra romântica e doce. Claro, não se pode comparar "O Rei" ao "Blue Eyes", e vocês sabem pra que lado a balança pesa, mas, para propósito de exemplo, eles pertencem a essa categoria mesmo.

Existem também aquelas que selecionam para si uma banda única, como Iron Maiden, Black Sabbath ou CPM 22, sendo esse último, claro, o melhor dos três. Se eu fosse uma criança de dois anos. Retardada. De qualquer forma, me distraí. Essas pessoas costumam adotar o estilo de se vestir dessa banda, suas maneiras de falar, elegem um membro como quase seu guru espiritual e, por fim, decoram cada momento sem som das gravações dela. Elas fazem de tudo pra ter um CD desses caras [ou garotas, sei lá... Pussycat Dolls é uma banda, não é?] ou um chiclete mascado por um deles. Diabos, eles são deuses!

Há também o tipo eclético monoverso ou multiversal. O eclético monoverso, e note que isso que vou falar não é um paradoxo nem um oxinomoro, é aquele que ouve todo tipo de coisa dentro de um só estilo. Pode ser Death Metal, White Metal, Black Metal... err... não sei mais nenhum tipo de Metal, mas tudo isso aí... forró, axé, lambada, tango ou até gospel. Só dá isso, mas qualquer coisa disso. Desde aquele famoso que apareceu na super-mega-ultra MTV! Brasil! [grandes merda...] ou aquele artista local, ele conhece, sabe pelo menos duas letras e ainda sabe arranhar alguma coisa no violão [sempre o violão].

Em contrapartida, o eclético multiversal, como você pode ter deduzido, isso ou você talvez seja realmente fã do CPM 22, da Avril e do NX Zero, é aquele que gosta de vários estilos, entendendo razoavelmente de três ou quatro e com conhecimentos aceitáveis em uma dezena mais [ou dúzia, se você for inglês e medir o comprimento da sua televisão com pés e polegadas, troço idiota... pés e polegadas? Sério? Não dava pra pelo menos usar um membro só, o braço ou a perna? Não, isso seria preconceito... por que não mede em orelhas também?]. Esse talvez seja o tipo mais comum, pessoas que não se "dedicam" a nenhuma espécie, mas passeiam por várias.

Claro, não existe o verdadeiro eclético, aquele capaz de apreciar todos os tipos de música, sem qualquer exceção. Se existir, quero ser uma mula verde, que é o símbolo da MPO. Tá, é um cachorro, mas eu achava que era uma mula, pode ser?

E aonde eu quero chegar com isso? Que todos podem estufar o peito e gritar "Sertanejo é uma merda!" Tá, não é isso, mas não condeno ninguém se o fizer.

É que, como verdadeiro adepto da lógica e da ciência, não consigo entender o que leva uma pessoa a gostar de coisas que acredito serem abomináveis [barulheira do inferno...] e repudiarem grandes clássicos [fala mal do Chico, fala...]. Simplesmente, não faz sentido! Não tem lógica. Nem o fator ah-tudo-depende-de-como-a-pessoa-foi-criada-e-não-tem-melhor-nem-pior-apenas-diferente-e-somos-todos-irmãos se aplica aqui. Talvez no caso dos serial killers, mas não nesse. Se alguém conseguir me explicar isso, prometo que minha vida terá mais sentido. Ou não, também. O Chico vai continuar sendo o Chico mesmo...

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Libra

O signo de Libra é o sétimo signo do Zodíaco, sucedendo Virgem e antecedendo Escorpião, de 23 de setembro a 23 de outubro. Seu símbolo é o único entre os doze que é inanimado, por assim dizer, ou seja, não representa uma pessoa ou animal, mas uma balança.
O surgimento da constelação de Libra segundo a Mitologia Grega está intimamente ligado ao do signo de Virgem: Astréia, filha de Zeus, decepcionada com os homens, decide subir aos céus virgem e leva consigo o sinal do equilíbrio, ligado à deusa Tétis. Assim, ela surge no céu noturno [Virgem] junto com a balança [Libra].
E por quê estou escrevendo sobre o símbolo de Libra? Porque, entre os doze, ele representa o equilíbrio e a moderação. O caminho do meio, como diriam os do Oriente. Mesmo sem acreditar na astrologia charlatã dos jornais, é possível ainda aproveitar parte das coisas que se diz em nome dessas besteiras. Cada signo evoca uma ou mais virtudes importantes e um ou mais defeitos.
Libra tem como melhor qualidade e maior defeito a mesma coisa: a Neutralidade. É da natureza da balança ser imparcial, medindo as coisas como elas são, sem se modificar por fatores externos. Contudo, é também do cerne do neutro não agir, preferindo ser apenas passivo e observar os movimentos dos astros, sem interferência.
Também existem outras qualidades ligadas a esse signo: calma, letargia, moderação, distração, para citar alguns. Todos eles decorrem da Neutralidade, o zênite desse signo.
Mesmo em um livro sobre nada podemos encontrar algo que valha. Tudo depende da capacidade do leitor ou observador de interpretar palavras vãs e encontrar um significado ou simbologia rica. Nada que busque algo que transceda à matéria pode ser de todo inútil.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

A Fonte de Todo o Conhecimento Universal


Eis aí a fonte da qual eu bebo. Uma enciclopédia de conteúdo livre com informações sobre tudo o que há de importante no mundo. Ou quase. Jogos, séries, corpos celestes, presidentes de Butão, políticos da Polônia, tirinhas nerd da internet.

Na Wikipedia, em inglês. A Wikipédia, em português, ainda é 10 vezes menor do que a original, mas está crescendo. Certo, ela é domínio de adolescentes que não tem mais o que fazer, de pseudo-intelectuais de faculdade e de aposentados e donas-de-casa entediados. Contudo, também existem contribuições anônimas de professores universitários, de estudiosos e entusiastas dos assuntos mais diversos.

Ela tem seus defeitos? Sim, é também uma qualidade. Explico: a Wikipedia exige que seus arquivos sigam o chamado NPOV, o Neutral Point of View, ou o Ponto de Vista Neutro, PdVN. Isso é fácil de seguir, por exemplo, no artigo sobre Éris ou a Nebulosa do Caranguejo, mas, por exemplo, naquele sobre a IURD a briga é terrível. Isso gera desconfiança da qualidade da Wikipédia, mas não se enganem. Entre ela e um site aleaório da internet, 75% das vezes a Wikipédia é muito mais confiável.

Agora, só ler não adianta. Contribuir é o mais interessante. Por quê? Por que perder tempo escrevendo artigos que nem vai levar seu nome assinado? Pra quê? Por causa do ideal dela: fornecer conhecimento para todos, acesso livre para quem quiser.

É uma bandeira que eu defendo. Talvez você deva testar. Se você tem bons conhecimentos de Filosofia, adicione informações ao artigo sobre Gottlob Frege. Ou então, se você joga bastante Fatal Fury, crie artigos sobre os personagens do mesmo.

Existem outros projetos-irmãos igualmente interessantes e pretendo falar deles, no futuro. Por agora, boas contribuições!

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Jogos I - Capítulo Newgrounds

Eis a grande distração do homem: os jogos em flash. Alguns que eu ainda jogo [sim, eu sei, estou errado em perder meu tempo com isso quando há tantas coisas ocultas e próprias da sabedoria a serem estudadas...].

  • Newgrounds, a grande jóia do flash da rede, nos oferece prestigiosamente:
    • Indestructotank! - É muito idiota... mas é mais divertido ainda.
    • The Last Stand - Jogos de zumbis são clássicos e esse é um dos melhores.
    • Dad 'n Me - Não é dos melhores, mas é bom.
    • Dark Cut² - Esse é diferente. Um pouco complicado, mas dá pra chegar ao final também.
    • 13 Guardians - Uma incrível perda de tempo... tá bom, não consegui ganhar.
    • Unreal Flash - Tá, nesse eu sou péssimo.

Esses são minimamente decentes. Existem outros... depois eu procuro...

sábado, 27 de outubro de 2007

Palavras

... Não, não posso me juntar a vocês. Ao menos, não da forma que vocês são. Entendam, nossos mundos fazem parte da mesma esfera, mas são bem separados por um longo caminho, possível de ser reduzido a nada, claro, somente por quem tem essa disposição.

Para eles, tudo pode ser traduzido com o corpo e, para vocês, com o som. Enqüanto para eles todo som é movimento, para vocês, todo movimento é som, mas para mim, todo som e todo movimento são palavras que surgem espontâneamente no vazio negrume da minha mente e flutuam ali, brancas, ritmadas, tão brilhantes que tenho que piscar uma, duas vezes com meu olho interno para enxergá-las bem.

A melodia que os toca, essa que flui tão naturalmente que faz parecer que vocês são feitos de notas, de lás, de sis ou de fás, membros de uma longa e antiga fraternidade daqueles que se dedicam aos acordes, a essas vibrações misteriosas que domam o indócil vento e agintam o orvalho sereno, é tão misteriosa pra mim, tão incompreensível quanto o é esse títere oculto nas sombras que puxa suas cordas, com tanto vigor e tanta sutileza, forçando-os a se movimentar como bonecos de trapos, mas bonecos de trapos com vontade própria, um embate animalesco entre ímpeto e controle, a técnica e os instinto se alternando tão ferozmente que, ao final, a exaustão derruba os corpos e desmonta o palco.

Meu mundo é o das palavras, mas não sou senhor delas. Sou senhor dos meus sonhos e da minha sorte até que elas me dominem e me ordenem, imperativamente, que lhes escreva, que lhes torne realidade. Uma mente bifásica, filhos do som, é a minha, controlada pelos números e pelas palavras. Enganam-se se acreditam que os números são mestres severos e as palavras, doces musas, enganam-se como eu me enganei quando escolhi as duas regências antes de ser nesse mundo.

Os números, filhas da flauta e do tambor, são calmos e objetivos e cumprem tão somente seus desígnios. Eles traduzem tudo que existe nesse mundo, até mesmo suas canções, tão exatamente que não me resta margem para qualquer dúvida, somente tenho que andar pela senda da lógica, sem temores, sem excessos, nada. O mesmo ar nós respiramos e, embora não possa moldá-lo como vocês, posso determiná-lo. Até mesmo o instrumento dos filhos de Adão e Eva, os filhos do barro, posso medir e calcular sem esforço. Apenas tenho que abrir bem os olhos e ler os números.

Sinto não poder conter uma risada nervosa e algo patética, mas é que a grande rede que me prende e sufoca está exatamente em todo o poder dos números. Cada palavra que nós escrevemos também pode ser denotada por eles, sem exceção. E é pensando assim que as palavras sussurram, não, elas não sussuram, elas não produzem som, elas simplesmente surgem, vagando, sempre o branco contra o escuro do resto da minha mente, e elas se organizam em uma fila bem clara, uma pergunta apenas, algo que me faz acordar no meio da noite, escravo delas, e ficar pensando, e pensando até que meu corpo as derrote e eu durma... "Mas nós não pertencemos apenas a esse mundo, não é mesmo?"...

terça-feira, 9 de outubro de 2007

A Verdadeira Dualidade


Um dia desses, eu estava deitado e pensando em como eu deveria ser mais disciplinado e estudar para as provas que eu tinha na semana seguinte, ao invés de me distrair com coisas no computador, na TV ou com um livro. Nesse comenos, uma idéia perpassou minha mente.

O mundo costuma ser dividido entre bem e mal, o certo e o errado, o justo e o injusto, o branco e o negro, a luz e a escuridão, e todos os seus habitantes vivem em algum ponto dessa fronteira ou escala. Sim, é verdade que existem dois modos principais de enxergar essa divisão, a definida e gradual.

A dualidade definida diz que ou você faz parte dos homens bons ou dos maus, ponto. Se você pensar, falar e agir em prol do bem, você fica no lado certo. Se você só pensa em coisas boas, mas não as coloca em prática, sinto muito, seu lugar é junto com os que nada fazem nesse sentido e pensam coisas perversas. Os neutros não ficam no meio do caminho, mas se fundem às sombras que compõem a terra da perdição, pois quem não se manifesta contra as injustiças é omisso.

Quanto à dualidade gradual, como o próprio nome indica de forma lógica, existem dois extremos, onde poderíamos colocar, a propósito de explicação, Deus e o Mal Absoluto, ou demônio se vocês preferirem. Entre eles, existe uma longa faixa variando da brancura tão brilhante que é impossível olhá-la dos santos e santas que andaram no nosso mundo até um preto viscoso como piche, que causa repulsa e asco e cheira a um beco de uma metrópole às 3 da madrugada, como aqueles que só vêem o mundo como um antro de sujeira onde eles precisam se dar o melhor possível a qualquer preço.

Contudo, como eu disse, essa noite uma idéia me chamou a atenção. E se a verdadeira dualidade da vida humana for algo menos berrante, muito mais sutil. E se a verdadeira dualidade for entre as questões existenciais e a futilidade?

Durante o tempo todo, nós ficamos divididos entre fazer o que precisamos e nos distrair. Talvez seja isso mesmo, talvez nosso desafio seja nos concentrar e pensar naquilo que deve ser pensando - nas outras pessoas, no mundo decadente, nas questões da vida, do universo e tudo o mais.

Não sou exemplo a seguir... sempre me distraio, sempre procuro algo pra enrolar. Porém, acho que é algo a se pensar quando se está deitado em sua boa cama, olhando pro teto ou de olhos fechados, antes de dormir. Pensar em algo que valha a pena, algo além da mera boataria que nos cega o tempo todo, aquela bijuteria toda com seu brilho falso e pintura descascando. As verdadeiras jóias são mais difíceis de se encontrar, mas sua luz é verdadeira e dura pra sempre. Só precisamos mergulhar bem fundo nos pensamentos e, além disso, voltar pra superfície e agir, falar, mostrar o que encontramos.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

"Mudança de paradigmas"

Quando eu ainda assistia Pokémon, lembro que em um dado episódio, aparecia a frase "Essa é a cidade onde sopram os ventos do recomeço"... Newbark town ou algo assim, não sei dizer ao certo.

Há algumas semanas, certos sinais começaram a aparecer. Não estou falando de coisas esotéricas ou místicas, dragões verdes formados por nuvens no crepúsculo ou pessoas com tatuagens misteriosas me perseguindo. Refiro-me ao clima do tempo em que vivemos, desses nossos anos. Sem dúvida alguma, desde que o mundo é mundo, pessoas pregaram que viviam no fim dos tempos, que a juventude estava corrompida e que a moral havia sido destroçada. No fim do 1º milênio depois de Cristo, não foram poucos os casos de suicídios devido à chegada do dia do Juízo Final.

Contudo... talvez estejamos realmente nos aproximando do ponto decisivo de nossa existência. Chega a soar sensacionalista, mas acredito que somos os atores do espetáculo final deste planeta. Na verdade, creio que podemos não o ser. Sim, sei que é contraditório, mas posso explicar.

O estado do mundo de hoje é terrível. Não, mais do que isso, é algo que não pode ser expresso com palavras. Estamos vivendo o momento mais temeroso de nossa história. Olhemos para o nosso país: em qual político você confia agora? Alguém ainda defende o nosso presidente, o homem que nos representa? E o Senado, a instituição máxima da República, qual credibilidade ainda tem? Quem de nós não teme andar sozinho à noite por ruas desertas, esperando ser abordado a cada curva, a cada viela?

Isso é o que pode ser chamado, com razão, de "sinal dos tempos". Não poderia ser mais óbvio que nossos valores estão sendo destruídos e ridicularizados, não um a um, mas todos de uma só vez. O egoísmo domina as mentes das pessoas e uma obsessão dilacerante pelo prazer e ganho pessoal só faz agravar nossa solidão e nossa dor. Se de um lado inúmeras pessoas decidiram que são senhoras de suas próprias vidas, ignorando a existência de um ser superior a quem devemos tudo, outras tantas se jogam nos tentáculos de vis templos que apregoam uma salvação inexistente através de um caminho dúbio, como o dinheiro e o preconceito contra outras crenças.

Todavia, penso eu que temos uma última chance de reverter isso. Quando escrevo última, quero dizer que depois dessa, se não a aproveitarmos, nosso mundo não será mais. Uma das virtudes exaltadas pela Igreja Católica é a fortaleza. Acordamos todas as manhãs para um mundo que nos chama a levar uma existência fútil, a nos distrair com inutilidades, a não pensar em quem sofre. Devemos ter fortaleza para resistir a esse chamado de força impressionante.

Vivemos a chance final de nossa raça. Seis bilhões e meios de artistas em sua apresentação derradeira. Podemos fechar as cortinas e sermos obliterados ou lutar pra legar um mundo correto para a geração seguinte. É uma escolha nossa.

PS: A expressão do título é do meu colega Troubleshooter #0 da Troubleshooter S/A.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

Primeiros Raios

A quem interessar possa,

Depois dos eventos de anteontem, dormi pesadamente durante várias e várias horas um sono sem sonhos, mergulhado numa escuridão profunda, mas calma, sem sentidos e sem temores, como se estivesse vagando para sempre dentro de uma canoa por um lago eterno e estático.
Abri os olhos lentamente e fiquei deitado por mais uns minutos, até que senti vontade de me levantar e descobrir, enfim, o que acontecera ao mundo enquanto eu estive ausente. Caminhei lentamente pelo corredor, desci as escadas e encontrei Lutia e Caius sentados à mesa de madeira, conversando. Ela interrompeu uma frase, foi em minha direção, passou a mão pela minha testa, como fazem as mães com as crianças pequenas e perguntou-me se estava tudo bem.
Lembro precisamente de ter me perguntando por que eles não tinham filhos, mas deixei de lado a questão e respondi que estava me sentindo melhor, mas que queria saber mais sobre o que tinha acontecido. Ela olhou significativamente para Caius, que assentiu com a cabeça e fez gesticulou, indicando que nós nos sentassemos em uma das três cadeiras. Lutia retornou ao seu lugar, diametralmente oposto ao de Caius, e eu me sente do lado dela e em frente a ele.
- Há sete anos atrás, um grupo de uma outra vila, vinda de uma área diferente da nossa, assentou-se no vale que fica a meio dia de viagem daqui. Os homens dessa vila são muito mais bélicos que os nossos, ainda que pertençam ao mesmo povo. Não são nossos irmãos, mas nossos primos. Eles vieram até aqui atrás de nossos recursos, pois apesar do pouco tempo, já criamos um sistema muito eficiente de captação, várias vezes melhor do que o primitivo deles. Em busca desse sistema e do material bruto, ontem, à noite, eles chegaram em nossa vila, levaram barro, madeira, ferro e cereais e mataram nossa guarnição simbólica.
Nesse ponto, Caius fez uma pausa para respirar e pegou em um copo de cerâmica, com um líquido ocre de cheiro forte, e bebeu em um só gole o que havia no recipiente. Pousou o copo novamente na mesa, passou o polegar esquerdo por uma ranhura da madeira bruta e voltou a me olhar, continuando.
- Nós já sabiamos que isso poderia acontecer. Aliás, os dois legionários, Polis e Salito, mortos ontem, - à menção disso, ele fechou os olhos brevemente, então, não tenho certeza se viu quando eu comprimi meus lábios e apertei com força minha mão direita que repousava sobre a mesa - também sabiam que um ataque era uma possibilidade palpável. Nós os enterramos hoje com glórias, apesar das máculas lançadas sobre os corpos deles.
Ao falar isso, Caius levantou-se e andou um pouco na direção da porta, de costas para mim e para Lutia, que também se levantou e se encaminhou para a cozinha. Com a mão estendida em direção a, mas sem tocar nela, ele concluiu dizendo.
- O Herói chegará em alguns minutos. Você pode me acompanhar até à praça do edifício principal, para recepcioná-lo. Acredito que ele virá acompanhado de uma companhia de trinta legionários, trinta pretorianos, trinta imperianos e dez equites caesaris. Isso deve ser o suficiente para refutar os ataques dos habitantes dessa vila de que falei, Jarki.
Juntos, chegamos até a praça central. De relance, espiei o quartel, que tinha um pano branco muito longo estendido pela sua parede lateral e por parte do terreno ao lado. Não vi armas ensangüentadas, cadáveres estendidos ou nada daquilo que pulsava na minha mente sem cessar. Somente o longo pano branco.
Reunidos, estavam mais de trinta homens, quase a metade da população da vila. Não avistei o residente em lugar algum, mas notei uma construção que até então não tinha observado. Uma espécie de castelo miniaturizado, com uma pequena torre, feito de pesadas pedras de granito, muito limpo e vistoso, com uma flâmula amarela pendendo de uma das janelas, o símbolo de uma besta mitológica de duas cabeças, uma de leão, no plano frontal, e outra de cobra, no plano posterior, e de corpo de cavalo, com duas caudas que lembravam as ofídicas.
No momento, devo interromper meus escritos. Em breve, retomarei-os.

Saudações,

terça-feira, 29 de maio de 2007

Uma Faca no Escuro

Aqip,

Parece que fazem meses que eu não escrevo. Não devido ao tempo em que fiquei sem escrever, mas por causa dos eventos que ocasionaram isto. Confesso que estou mais abalado do que achei que deveria estar, mas não há o que se fazer, eventos inesperados provocam reações inesperadas. Esta aí uma citação que eu não quero que façam minha.
Poucos dias após nossa visita à casa do residente, eu acordei com uma sensação estranha. Talvez vocês não a conheçam, mas a identifiquei como sendo aquela característica dos que não estão no lugar certo. Já se passou mais de um mês desde que eu cheguei a esta vila e tenho vivido como se não tivesse mais nada que fazer exceto aproveitar a hospitalidade de Caius e Lutia.
De fato, parando pra pensar agora, nem sequer perguntei por que eles me abrigaram de uma forma tão acolhedora, sendo eu um estranho completo, ou ainda, um forasteiro desprovido de qualquer interesse em especial. Talvez haja mais neles do que os olhos podem enxergar. Ou em mim, não sei.
Em vez de acompanhar Caius para a colheita, resolvi ficar na casa, conversando com Lutia. Ela me contou que tinha três irmãos, dois mais velhos e um mais novo, e uma outra irmã, mais nova. Os nomes deles ela me disse, mas sinceramente, não estava tão atento a ponto de lembrar-me agora.
Também me contou como ocorrera o casamento com Caius. Para minha total surpresa, Caius também era um forasteiro, disse-me Lutia sorrindo, um homem forte e sorridente que um belo dia apareceu caminhando pelos campos, parou na casa do pai dela e pediu trabalho. Eles logo se enamoraram e, após alguns anos, ambos partiram para fundar uma nova vila junto com alguns pioneiros, como era tradição de seu povo.
Perguntei a ela se era tradição acolher forasteiros entre eles e ela me explicou, com um sorriso esguio, que tradição, exatamente, não era, mas que éramos, nós, os forasteiros, tão raros que quando aparecia um, eles faziam de tudo para tratá-los adequadamente.
Comemos e aprendi mais sobre o vilarejo e seus habitantes. Descobri, pois, que o fluxo de migrantes era contínuo e quanto maior a vila, mais gente vinha, num processo cíclico, até que parte deixava suas casas para fundar uma nova vila, sob o comando de um subresidente, designado pelo residente da vila. Soube, pelos lábios dela, que se comprimiram de uma forma expressiva, apesar da voz negar, que a impressão que o residente lhe causava era mista de poder e repulsa. Sentimentos comuns, acho, para aquele tipo de pessoa. Por um segundo, talvez por maliciosidade, pensei ter visto um esgar de descontrole sobre si mesma, como se não fosse possível reprimir um sentimento de força máxima. Amor ou ódio, acredito. Realmente, há mais nessa mulher do que os olhos enxergam.
O sol não tardou a se pôr e as primeiras estrelas surgiram. Não sei se notei isto antes, mas elas brilham com uma intensidade sem par nesse lugar, piscando às centenas, não, aos milhares. Sob o rumo das estrelas, mas sem lua, vimos os dois Caius chegar dos campos, balançando um alforje por sobre a cabeça. Este continha várias moedas finas de prata, com um brasão incrustado em um dos lados e uma efígie no outro. Soubesse eu mais de heráldica ou ainda de numismática, seria capaz de dizer qualquer coisa que não o que me contaram, que se chamam pratas, simplesmente.
Fomos dormir, mas não o sono dos justos. Durante o meio da noite, fui acordado por um barulho constante. Parecia ser uma espécie de música, um compasso marcado que ia crescendo pouco a pouco, mas permanecia muito, muito baixo. Depois de algum tempo, de olhos bem fechados, tremendo de medo e incerto se estava acordado ou sonhando, consegui identificar parte do canto - "a marcha da noite não cessará, espadas e lanças, cavalos e escudos, a morte e a vida nos elevará, os oito devem ser respeitados, encontrados, saqueados e adorados...".
Fiquei hipinotizado, acho, por minutos sem fim, até que levantei-me assustado, compreendendo que aquelas não me eram vozes familiares e parecia uma canção de guerra. Abri minha porta rapidamente, apenas para ser empurrado pra dentro, com minha boca tapada pela mão de Lutia, um olhar tão sério que me desarmou e não tive outra reação que não sentar ao chão e esperar as palavras dela.
Cale-se, disse-me, cale-se ou todos morreremos. Fique quieto no seu quarto e não saia, não importa o quê. Caius e os outros já estão cuidando disso. O Herói foi convocado, mas só chegará daqui alguns dias. Assenti com a cabeça e esperei cinco minutos do momento em que ela fechou a porta. Então, abri-a vagarosamente e, pé ante pé, andei o corredor de madeira e desci a escada colado à parede, para não fazer barulho. Agachado, abri a porta de entrada cuidadosamente, de modo a fazer o menor barulho possível e congelei por duas vezes, quando achei ter escutado vozes próximas demais.
Olhei pra fora e, iluminados pela luz das estrelas e do céu sem lua, estavam vários homens, soldados armados de espadas e escudos, com três homens montados em cavalos marrons. Embora esses pareciam mais aptos a guerrear, o capitão aparentava ser um homem que estava quase trajado como os outros da infantaria, exceto pelas cor preta de sua capa, contrastando com o vermelho da capa dos outros, e armadura e espada mais brilhantes.
Procurei com os olhos, sem me mover, o quartel dos legionários da vila e o que testemunhei não poderia ser recriado em cem anos pela minha imaginação... os soldados inimigos rodeavam dois cadáveres, despidos completamente, as armas e armaduras banhadas em sangue. As cabeças deles eram jogadas de mão em mão, chutadas e pisoteadas, cuspe e urina por toda a face. Os olhos e as línguas haviam sido arrancados, trespassados por lança e estacados no coração dos corpos.
Fechei a porta e, rastejando, voltei para meu quarto, apertei os olhos, para fazer com que aquelas imagens terríveis desaparecessem e passei o resto da noite empapado em suor e lágrimas, amaldiçoando minha incapacidade de lidar com a crueldade daqueles homens. Sem mais agüentar, levantei-me derrotado, sentei à minha cadeira, acendi uma vela e resolvi, por fim, escrever essa carta e deixar registradas a minha covardia e a minha vergonha.

Saudações,

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Aviso ao Residente

Aqip,

Se minhas palavras chegam aos olhos de cinco, já é muito. Mas não preciso de mais, contudo. Gostaria, é certo, mas não preciso. "Navegar é preciso, viver não é preciso". Agora que entendi o significado dessas palavras, fica difícil não utilizá-las sempre que posso.
Enfim, escrever é uma coisa que me deixa feliz, de alguma forma. Sempre acho que posso fazer melhor, claro, mas me deixa feliz de um jeito ou de outro. A razão, bem, a razão é tão simplória que até fico um pouco receoso de escrever: é que gosto que os outros saibam o que penso. Apenas isso. É que escrevo melhor do que falo. Não nasci com o dom da oratória. Não falo pior do que a média da nossa terra, mas isso, em si, quer dizer pouco ou nada.
A carta de hoje é bem mais objetiva do que a da última semana, acho. Ainda não a escrevi. Mas penso que será assim porque, na última semana, estive eu doente de verdade. Não entendi ainda muito bem porque, mas, aos poucos, acho que compreenderei. Enfim.
No dia seguinte à minha recuperação, acordei bem cedo. Antes até do que Lutia e Caius, alguns minutos mínimos, dois, quinze, mas o suficiente para que ficasse olhando o céu no horário em que não é nem manhã nem noite, o céu que assume uma cor difusa, um azul, roxo, com um pouco de vinho. Complicado descrevê-lo, mas quem o conhece, conhece. Já a hora, é aquela hora em que as coisas estão em silêncio, o frio é denso e você pode sentir o vento a cortar-lhe caminhos, o ar que se respira é, realmente, revigorante, algumas pessoas caminham pelas ruas vazias, em seus casacos bem fechados, com um meio-sorriso no rosto quando lhe passam o caminho, o pensamento bem, é, eu também acordei cedo, aqueles que dormem são os inocentes que não vivem.
Ao escutar os passos de Lutia no chão de madeira do corredor, fechei meus olhos para fingir que estava dormindo e simulei o melhor que pude a respiração de alguém desacordado. Tolice minha, acreditar que uma mulher seria enganada por um artifício tão ingênuo. Ela simplesmente abriu a janela sobre minha cama, separou-me uma roupa e, ao abrir a porta para sair, disse-me, sem virar o rosto, 'Bom dia, viajante. Mais quinze minutos aí e Caius lhe deixa pra trás'.
Não há, afinal, como enganar as mulheres de quem gostamos, acho eu.
Vestido, encontrei-me com Caius na sala. Ao contrário dos outros dias, a mesa de madeira sólida não estava coberta por uma toalha de cor beje, mas nua. Ante o meu olhar pensativo para a mesa, Lutia respondeu-me 'Vocês comerão com o residente da vila'.
Já estava a me dirigir para a carroça, quando Caius me gritou, no portão da casa, 'Apressado, hoje, não vamos por carroça. Vamos caminhar. Faz bem de vez em quando, ainda mais para quem acabou de se levantar de uma doença'. De certa maneira bem-disposto, caminhei até o seu encontro e passamos a andar. A vila em si estava iniciando sua vida, voltando, como eu, da morte.
Posso descrevê-la, mas não é interessante, de fato. Algumas casas, parecidas com a de Caius, algumas pessoas, de feições que lembravam as de Lutia, mas não a de Caius. Ainda não o descrevi, eu sei, mas é que alguma coisa me falta pra fazê-lo, algum lugar onde já vi uma expressão como a dele, alguma pessoa que conheci que era semelhante. Não posso descrevê-lo incompleto, sem essa singularidade de semelhança que preciso apontar. Desculpe-me a descrição, mas ela vai esperar eu me recordar. "Recordar é viver"... hmmmmm....
Um armazém, em reformas de ampliação, assim como um celeiro. Um pequeno quartel, com dois soldados, muito semelhantes ao resto dos aldeões, exceto pela pequena espada de ferro, nada ameaçadora, e um elmo de ferro amassado. Representantes do poder central, provavelmente. Pensara em poder central vagamente, pois que eu não fazia a menor idéia de como era governado o lugar.
A um dado momento, enquanto eu estava distraído com minha imaginação, Caius interrompeu sua caminhada, ação que secundei. Olhei para a direita e vi a segunda maior moradia da vila, perdendo apenas para o edifício central, em torno do qual todos construíam suas casinhas, numa ordem impressionante. Meu companheiro estava apenas olhando a porta, de madeira polida e brilhante, calma, mas compenetradamente, e eu me peguei perguntando se ele telepaticamente iria ordená-la abrir-se, quando aconteceu que esta de fato abriu. Entramos.
A casa do residente, de três andares e com uma pequena torre, feita de pedra, diferente do resto da vila, que era primariamente de madeira, era acolhedora por dentro. Peles de animais selvagens pelas paredes e quadros com pinturas da natureza. O mais rico da aldeia, com absoluta certeza.
Caminhamos pelo corredor até uma sala, onde uma bela mesa de pés trabalhados e lugares para oito pessoas, duas à cabeceira, três de cada lado, dominava o espaço, que contava também com um aparador de cor e madeira idênticas, um quadro do que deveria ser uma besta mitológica, um grande felino de oito patas, sobre uma pedra, e um tapete de pele com padrão tigrado. Bonita.
A tal mesa estava posta, com lugares para sete convivas. Nós dois devíamos estar ou atrasados ou eles adiantados, porque cinco já estavam sentados. Dois homens, com cabelos tão parecidos com os de Lutia, embora curtos, que, se convidado a julgar, coisa que jamais seria, acho, diria que eram parentes próximos, irmãos talvez, duas mulheres já não tão belas quanto Lutia, mas com um sorriso afável e um outro homem à cabeceira. Este homem, em especial, petrificou-me por instantes.
Suas feições e seu olhar eram serenos, mas próprios da aristocracia, como um ser superior entre súditos especiais que fizeram por merecer a sua presença. Sua compleição era mais delicada e mais clara do que a dos outros habitantes da aldeia, como a minha própria era. Seus lábios eram finos e o nariz, ligeiramente adunco, combinava soberbamente com os olhos negros e estáticos. Os cabelos eram ondulados e curtos, muito bem aparados. No geral, era uma figura imponente pela firmeza dos traços e, honestamente, um homem belo.
Ele pousou seu olhar sobre mim por uns tantos instantes e ouvi sua voz, convidativa, mas com um tênue tom, ou talvez era minha impressão, acho que não, de agressividade passiva, pedindo que eu me sentasse em um dos dois lugares vagos, que Caius ocuparia o outro.
Passamos nós à refeição, e, para falar a verdade, ninguém conversou comigo, mas não me importei. Fiquei entretido observando a relação entre os outros e o anfitrião. Era como estivessem em uma partida de um jogo, o anfitrião era jogador e árbitro ao mesmo tempo, mas mudava as regras ao seu bel-prazer, fazendo com que os outros convidados tivessem que se esforçar de maneira visívil para se manter nas regras. Pensei notar duas ou três vezes um brilho de satisfação em brincar assim nos olhos do residente, mas não me foi possível averiguar se assim o era, porque ele logo reassumia seu aspecto opaco e distante.
Depois de comermos, todos os outros foram embora e ficamos sós, o residente, Caius e eu. Ele fez um gesto leve com a mão esquerda e indicou-nos uma sala adjunta, com quatro poltronas revestidas de pele de animais também, com uma jarra de vinho e três cálices de um metal dourado. Sentei-me em uma delas e aceitei, por cortesia, o cálice que ele levou às minhas mãos. Era uma bebida doce, saborosa, realmente, como fora a comida que tivemos, quase sem a marca indelével do álcool. Claro, se não a tivesse, não seria indelével. Retomando.
Ele nos olhou placidamente, não como um cordeiro, mas como um felino, e nos falou, numa voz tão calma que nem pareciam partir as palavras que ele diziam da boca do residente:
- De fato, os convidados muito se alegram por virem aqui. São pessoas boas, afáveis, mas simples, comuns, ordinárias. Entretenho-me por um dia e nada mais. Acontece muito. Normalmente, escolho um em especial. A ele, dedico meu tempo e minha vontade, enalteço suas características boas e diminuo suas falhas. Ajudo-o como posso, passo-lhe a mão em carinho e sorri-o com ternura. Cativo-o e sou por ele cativado.
A esse ponto, ele fez uma pausa, sorveu um gole do vinho e suas pálpebras baixaram um pouco, sem que fechassem-se os olhos. Ele fez um baixo múrmurio com os lábios, afastou o cálice da boca e continuou.
- Sim, cativo-o e sou por ele cativado. Como disse, ele é especial para mim e faço o possível para sê-lo para ele. Contudo, assim como a árvore que cresce no meu jardim, os homens que trabalham nos poços de barro lá fora e a minha gata, deitada no telhado desta casa a se aquecer, eu conheço bem minha natureza. Sei quais são meus instintos básicos e sei, também, as motivações do que faço. Sou um sistema em equilíbrio, por assim dizer. A verdade é que eu sei que estou a me distrair em um jogo, prazeroso, verdade, mas como qualquer brincadeira, uma só perda de tempo em troca de diversão. Logo, semanas, meses ou anos, não importa, pra falar a verdade, acabo por cansar da rodada. Passo por todo o processo de separação, com a tristeza e a dor que lhe cabem, verto lágrimas tão sinceras que enganariam o mais sábio dos homens. Não sou o maior de todos os sábios, então sei que as lágrimas, que quase me enganam, são falsas, ainda que verdadeiras.
Enquanto ele sorvia mais um gole de seu vinho, aproveitei para olhar, discretamente, para Caius. Ele olhava nosso anfitrião com um olhar inexpressivo. Teria já escutado esse discurso?
- São verdadeiras, porque eu realmente estou sentindo a falta desse de quem me despeço. São falsas, contudo, porque eu sei, minha natureza, que eu só estava jogando para me distrair e que nada daquilo foi verdadeiro. Para os meus olhos, a chuva e o sol tanto fazem, porque não me importam verdadeiramente. A minha natureza é semelhante à da minha gata, que se tem em tão alta estima que nada realmente lhe afeta o orgulho de si mesma. Logo, logo, ela encontra outra coisa e eu, outro homem a quem me ligar e de quem partir quando cansar.
O residente pousou seu cálice na mesa de centro, da mesma madeira da mesa da sala anterior, fitou-me com um olhar menos seco e opaco e vezes mais instigante e disse, afinal, e as palavras me ficaram bem marcadas, de modo que não foram deturpadas pela memória:
- Sou o residente desta vila e ajo de uma maneira sensata, de acordo com a visão daqueles que sabem. O viajante é bem-vindo em nossa pequena aldeia, mas recomendo-lhe visitar também outras paragens. Nossa terra é muito rica em governantes diversos e o poder central, que estou certo de que desconhece, só aparecerá depois de muito ver. Quanto aos acontecimentos a se seguirem, não sou vidente para sabé-los com certeza, mas assim como um jogador experiente, tenho a idéia correta. Lembre-se da máxima 'em Roma, como os romanos'.
Caius levantou-se e eu o segui, calado, até a casa. O resto do dia foi desinteressante, provavelmente porque o residente me causara tão forte impressão. Sinto-me até este momento um pouco desnorteado e creio não saber que farei amanhã.
Saudações,

domingo, 6 de maio de 2007

Delirium Moris

Aqip,

Sinto muito por ter me demorado a escrever desta vez. A explicação é o próprio título desta, o delirium moris como vim a saber mais tarde. Relendo a última coisa que escrevi, posto que mantenho uma cópia de tudo que escrevo em um caderno a mim confiado por alguém deveras importante, não precisamente para esta história, mas para uma outra, muitas vezes mais interessante, não uma cópia através de copiadoras, como pode saltar logo à mente de estudantes do ensino médio e superior, tão comum e difundida é a prática, ainda que ilegal, em sua intrínseca forma utilizada nas casas do saber, as tais universidades, mas realmente reescrevendo tudo, não com a mesma letra, claro, porque canso-me rápido de escrever, não quero dizer que me chateio, mas que realmente canso-me fisicamente, mas tento não errar sequer uma vez, para manter a beleza e a uniformidade.
Depois do que Caius me falou, não tive a coragem, admito, de tocar no assunto. Eu estava instigado, sim, com as idéias dele, e queria argumentar, mas me era impossível. Percebo agora uma falha gravíssima, que tentarei corrigir de agora em diante. Nunca cheguei a descrever Caius corretamente. Mas isto é porque não havia prestado especial atenção à aparência dele, visto que, em geral, concentro-me tanto nas idéias de uma pessoa que a aparência me é secundário, porque pouco me importa, ainda que me importe um pouco, o envólucro onde está um conteúdo sublime ou, francamente, patético, e este último tipo há que se tomar cuidado, porque os patéticos costumam gerar pena nos mais fracos de sentimento, e isso não é sentimento que se deva ter, ao menos, não para quem não merece.
Estávamos nós voltando na carroça dele, esta também não muito bem descrita, de madeira de uma cor clara, não brilhante e reluzante como as suas respectivas camas, mas de um material bruto e resistente, com vários nós aparente formando círculos sinceramente entretenedores para aqueles que se perdem nos próprios pensamentos, atrás iam as rudes ferramentas dele, um espaço uns três metros de largura por dez de comprimento, rastelos, pás e enxadas, todos de cabo de uma madeira escura, bem gasta, a enxada em especial com marcações seguidas de traços partindo da metade do cabo até a base, sem muita regularidade entre si, duas fileiras opostas simetricamente, mas não igualmente, visto que uma começava mais em cima e a outra terminava mais em baixo. A carrroça estava cheia de feixes de cereal que caio passara a tarde inteira colheitando, a foice também ali estava, não a foice como costumam retratar aqueles desenhistas e pintores que imaginam a morte uma caveira encapuzada de preto com aquela terrível gadelha, disse o Saramago, não, mas uma foice claramente muito utilizada.
Estávamos nós voltando, ia eu escrevendo, quando os sons começaram a me parecer difusos e eu não conseguia mais ver com toda a clareza, o entorno do meu campo de visão já estava embaçando e eu me forçava, piscando os olhos, tentando enxergar melhor, até que comecei a ouvir coisas estranhas vindo da boca de Caius, coisas que eu tenho certeza absoluta de que não poderia ele dizer, coisas a qual ele não tinha acesso, dizendo que a minha viagem devia ter sido complicada, porque eu não estava acostumado à passagem, mas que sempre é assim, ninguém está acostumado, de qualquer forma, é uma viagem só de ida, então não há com o que se preocupar, daqui, você faz outra, e outra, e assim em diante, rumo ao infinito, ele dizia, com uma voz calma, olhando para frente, segurando as rédeas, de couro, que guiavam a égua, com uma pontada de ironia nas últimas palavras, desmaiei.
Delirium Moris, hmmm..., Delirium Moris, é o que você tem, ou tinha, não sei dizer ao certo, tinha, disse uma outra voz desconhecida, pronto, aí está, tinha, não tem mais, é o que acontece quando a gente não toma cuidado, dana-se a perder o que se tinha, mas, nesse caso, o perdedor é o vencedor, ou o vencido, se o objetivo fora apenas derrubar e não aniquilar, era a voz de Lutia a ressoar do inferno, não, de algum lugar à minha esquerda, minha cabeça latejava terrivelmente, Delirium Moris, que diabos que fica repetindo, a voz de Caius agora, uma voz sonora, parecia-me estranha e agressiva e a dor continuava a me atormentar, se bem que não existe tormenta de um minuto, um minuto ou dez, ou quinze, ou uma hora inteira, não sei, minha boca está seca, gosto ruim, péssimo, devo ter dormido e devo estar doente, preciso me lavar, estou encharcado de suor, o cheiro me impregna e eu me sinto ligeiramente enojado das minhas próprias roupas, não de mim mesmo, posto que nunca se tem nojo das próprias reações naturais do seu corpo, ou das suas ações naturais, bem, isso se você não for um recatado consigo mesmo, tipozinho patético, enfim, recobrou-se?, Caius de novo, abri os olhos, vultos, fechei os olhos, dor, permaneci assim mais instantes, catorze, o quatorze, sempre mudo a forma que falo, nunca a que escrevo, catorze, é mais, não sei, certo, acho, para os meus olhos, não sei, acho que a forma original devia ser quatorze, mas catorze era mais fácil de escrever e sonoramente melhor, então ficamos com catorze, mesmo, catorze ou quatrocentos, não tem o mesmo efeito, quatorze ou quatrocentos anos, agora, sim, quatorze ou quatrocentos anos, não sei ao certo, reabri os olhos, luz de vela, tênue, mas uma agulha, cem, caindo do teto, entrando pela minha testa, inflingindo um mínimo de dor no meu cérebro, multiplicado por cem o mínimo se torna considerável, diminuir tudo em frações mínimas e somá-las, essa é a forma de saber o total, dizem, diz, Messier Euller, está morto, muito morto, séculos, abri os olhos de novo.
Vi Lutia. Ela não era uma mulher feia, não, mas não conseguia classificá-la exatamente, tinha uma beleza um pouco dura, soberano, capaz de causar medo e domínio. Tinha cabelos negros, alguns centímetros abaixo dos ombros, presos em um rabo-de-cavalo simples. Não usava qualquer outro tipo de adereço, sempre destido branco ou beje, ou outra cor cujo nome eu não sei, mas cujo tom varie entre o beje e o branco e que para mim, homem, é impossível distingüir tanto quanto para um cachorro ou um gato.
Ao seu lado, com uma barba negra bem aparada e vistosa, usando uma espécie de óculos com aro negro reluzente e um olhar distante, quase superior, de um maneira arrogante, quero dizer, estava um homem de roupas brancas, heh, esse prestou o juramento de Hipócrates, disse eu para comigo mesmo, mas acho que ainda estava sob efeito da doença, ele me respondeu sim, o prestei, oras, falei alto, afinal, falha minha.
Caius sentou-se ao me lado, em uma cadeira tosca de madeira, mas aparentemente nem desconfortável nem confortável, indiferente, neutro, e explicou-me, em voz baixa e muito mais amistosa do que aquela que eu delirei escutar ele utilizar na carroça que eu tinha sofrido de um mal comum a estrangeiro àquela terra, o Delirium Moris, assim chamado porque as pessoas que padecem disso costumam pensar que estão a morrer, as pessoas sempre estão a pensar que estão morrendo, sim, elas costumam, respondeu-me com um sorriso novamente um tanto melancólico, ele me pareceu estranho, um pouco como se me escondesse algo, todos têm segredos, sim, todos têm segredos, droga, falei alto de novo, que há comigo hoje.
Ele pediu-me que eu descansasse, amanhã seria um dia importante. Ante à minha expressão de honesta dúvida, ele se levantou, Lutia e o outro homem, médico, pois, já tinham saído, e, sobrou a candeia, dizendo, com essas exatas palavras, 'Vamos à casa do residente da vila'.
Tentei reproduzir tudo como acontecera, mas a memória completa com certos pedaços fantasiosos os momentos vivazes quanto mais eles se afastam, então, perdoem-me se há aí algo de sobrenatural ou incrível, tentei relatar exatamente o que aconteceu.
Escrevo na volta da casa do residente. Até.

Post-Scriptum - Lutia acaba de me informar que fiquei de cama três dias. Disse-me que eu me recuperei muito bem e me sorriu, para que eu me animasse. Ela é uma boa mulher, afinal, penso.

terça-feira, 24 de abril de 2007

A Palavra Final

Aqip,

A verdade é que é mais fácil escrever as coisas do que falá-las. Acredito eu que isso se deve ao fato de que uma vez escrito, ainda é possível apagar o que ali foi anotado com lápis ou rasgar o que está marcado à caneta.
Contudo, palavras ditas não podem ser abafadas nunca mais. Com sorte, o alvo da sua maledicência ou da sua imprudência estava distraído no exato momento, acaso da sorte ou da vontade de algo maior, não sei, e você não sofrerá as conseqüências. Mas elas continuarão a soar dentro da sua cabeça e você se torturará, perguntando-se de noite, sozinho, sem ninguém para lhe pertubar a conversa com o seu demônio, por que não usou uma voz mais firme, por que não disse de outra forma, por que sequer falou aquilo.
Enfim, começo admitindo que estava errado quando julguei de primeira Caius. Pensei que era uma boa alma, isso conta a meu favor, mas que era também simplório, incapaz de qualquer pensamento além de sua esfera mundana.
Transcrevo, pois, a conversa que tive com ele durante a colheita do trigo. Conversa por assim dizer, que foi mais um monólogo, uma palestra que devo me recordar. Assim se seguiu:
Caius subiu na carroça, conferiu a ordem de suas ferramentas e esperou calmamente enquanto eu, com certo desajeito, me posicionava ao seu lado. Balançou de leve as rédeas que tinha nas mãos e o cavalo, muito bonito e bem cuidado, pelo menos, até onde eu entendo de cavalos, que é nada ou quase nada, mas que se pode fazer, se eu só montara em um desses há um ano, mas fora uma experiência agradável, realmente, sentira-me senhor de terras em cima daquele animal de passo contado.
Enfim, por uns cinco minutos nada dissemos um ao outro que não perguntas casuais sem importância, dormiu bem?, sim, não, por quê?, é a velha dor nas costas que levo comigo desde criança, quando ainda sentia a dor dos meus ossos crescendo deitado ao lado de minha mãe, como se chamava, Megara, nome único, sim, único, e por assim ia.
Foi quando Caius vagarosamente apanhou algo que lembrava muito um retângulo de papel, apanhou um pouco de uma graminha amassada, de cor verde-escura, uma cor bonita, que lembra a do verso das folhas das árvores grandes das ruas da minha cidade, e como se fosse gesto natural, como levantar, comer e dormir, pôs-se ele a enrolar o quadrângulo de papel em torno do matinho uniformemente distribuído, regularmente só pela experiência de saber quando devia por em cada centímetro medido, acho eu.
Admirado por aquele processo, demorei ainda uns segundos até conseguir formular a pergunta que me insidiu de início.
- Caius, que é isso que está a fazer?
- Oh, isso, amigo urbano, é um cigarro. Um cigarro feito à mão, da folha do tabaco do quintal lá de minha primeira casa, que minha avó e avó dela plantaram para mascar enquanto os homens iam à guerra com os teutões e elas ficavam a guerrear com os espíritos maus da noite, que lhes tentavam a paciência e o desejo.
- Um cigarro? De tabaco? - fiz eu as perguntas, como se fosse criança, não, não criança, posto que criança aprende as coisas rápido, mas como se fosse um ancião tresloucado, sem ciência do porquê do mundo girar nem da natureza dos homens.
- Sim - respondeu-me Caius, com um sorriso estranho no rosto, lembrava-me ao mesmo tempo a melancolia e a sabedoria, às vezes, vai que as duas caminham juntas, braço de uma por sobre o ombro da outra - um cigarro de tabaco. Para fumar, sabe?
- Mas, Caius, não sabe você que o cigarro cau-
A expressão de meu anfitrião tornara-se naquele instante séria e decidida, como se soubesse, e obviamente sabia, o que eu estava pensando e que iria dizer.
- Tomas-me por tolo ou por insano? É mais do que evidente que sei o que o cigarro causa. Sei também como manejar uma xiphos ou um kadesh, assim como a enxada e o rastelo, sei o tempo que leva para que o trigo possa ser debulhado, sei o cheiro de minha mulher Lutia e sei quando ela está me escondendo algo, sei o nome de cada estrela da constelação que cabe à minha família e sei que vou morrer.
A maneira com que ele disse a última palavra, "morrer", foi tão significativa que fiquei sem reação. Enquanto isso, Caius terminou de enrolar o fumo, levou-o a boca, mas sem atear-lhe fogo, disse-me ainda:
- Todo homem morrerá e não será diferente com você. Eu hei de tombar e me transformar no próprio alimento dos meus filhos, assim como minha avó faz hoje parte de todas as casas dessa vila, pois que faz mais de trinta anos que ela se uniu com a terra que lhe pariu um dia. A morte segue cada um desde o dia em que nasce o rebento, não como um predador à espera do prêmio, mas por curiosidade, pra saber como foi o seu contrário, a vida, que não lhe é inimiga, apenas incompatível. Todos sofrem com o temor de deixar de existir num dado momento, sem aviso, sem saber o que lhe espera.
Nesse instante, Caius tirou o cigarro da boca e ficou olhando para ele por algum tempo.
- Sabe, forasteiro, qual a diferença entre essa égua que nos leva e eu que contigo converso? - como disse antes, minha ignorância sobre equinos era completa, no final das contas, era uma égua, e não um cavalo - A diferença é que esta égua se contenta com a vida que levará e não terá reação de surpresa alguma quando se prostar por falta de forças. Já eu, eu não quero que seja assim. Por isso, decidi que morrerei da forma que quero, e essa forma é esse cigarro. Não serei levado por nada que não tenha sido causado por mim próprio. E pouco me importa se isso é ou não o plano do divino ou do profano, a escolha foi feita, afinal, por mim, que sou senhor de minha vida e de minha morte.
Não falamos mais nisso durante todo o resto do dia, mas cada palavra que ele disse me marcaram. Bem, não sei se foram exatamente essas que transcrevi, mas acredito que elas transmitem a mesma sensação que me dominou por horas a fio.
Devo ir agora. Vejo a lua do lado de fora da janela de meu quarto de hóspede. Um outro dia, escrevo eu.

quarta-feira, 18 de abril de 2007

Novos Aires

Aqip,

Foi uma viagem um tanto quanto estranha. A partir do ponto onde parei na primeira missiva, eu juntei tudo o que precisava para viajar, abri a porta, andei alguns passos e olhei para trás. Não sei, alguma coisa parecia me chamar dali de dentro. Foi como se a minha casa tivesse tomado vida e ela se mostrasse como um lugar de onde eu não deveria sair. Uma proteção completa que eu estava abandonando no segundo posterior àquele em que eu batia o portão.
Talvez fosse simplesmente medo do desconhecido, não sei. A verdade é que eu fiquei parado por um minuto, talvez mais, de costas para minha casa, olhando para a rua e o vento que soprava ali não era de todo diferente do vento lento a navegar sobre as águas do Estige...
Andei por uns minutos, descendo pelo caminho, pensando nas coisas que ficavam aqui enquanto eu partia, e senti um certo apelo por ficar. Porém, eu saíra pela Porta das Decisões, e isso não me permitiria mudar de idéia.
Resolvi seguir as direções que me foram dadas. São muito simples, mas, ao mesmo, tempo, complicadas de serem realizadas, por exigirem uma capacidade de mudança de linha de pensamento e de interrupção das mesmas um pouco avançada. Passei minhas últimas duas semanas treinando isso da maneira que podia, antes de dormir, olhando para o teto, que é a hora em que as coisas mortas se misturam às vivas em um reino sem limites definidos, mas com regras existentes, ainda que incompreensíveis.
Uma vez realizadas [se quiserem, escrevo outra vez explicitando-as], de alguma forma, encontrei-me numa via de terra entre dois muros muito longos, de pedras angulosas e pesadas, cobertas de musgo. O caminho já tinha sido utilizado várias e várias vezes, mas não encontrei ninguém em trânsito ali. Andei por um tempo até que me vi no alto de um montículo, com uma visão clara para o que eu acreditei ser na hora o meu destino: um vilarejo de pouco mais de uma centena e meia de habitantes, com casas e construções dispostas em semicírculo, todas bem organizadas.
Desci pela esquerda do morro, menos utilizado, ladeado por grama baixa e algumas árvores de folhagem escassa. Andei por uns 400 ou 500 metros, até que um homem que estava à frente de uma carroça, levando um pouco do que parecia ser trigo em direção ao centro da aldeia, avistou-me, deu meia-volta e veio ao meu encontro.
Não repito o diálogo aqui porque quase sempre conversas introdutórias são enfadonhas. O nome do homem era Caius, com us mesmo, e ele devia ter uns trinta anos de idade. Não me perguntou de onde eu vinha ou qual era a minha missão naquela terra, apenas me convidou para jantar com sua família. Ele também me contou que a vila fora fundada há alguns meses e prosperava de maneira ostensiva.
Não pude observar muita coisa da aldeia porque a casa de Caius e de sua mulher, Lutia, ficava à entrada da vila, sendo ele o responsável pela colheita do trigo, segundo me contou, mas consegui ver um grande armazém onde eram estocadas coisas diversas, um granário para o trigo, suponho, e um edifício que aparentava ser o centro da vida que amansava dado que estávamos já quase no plenilúnio.
Estranhamente, porque eu senti que pouco andara, estava exausto e foi de imediato que dormi ao deitar na cama. Acho que permaneci desacordado por umas dez horas, ou mais, até que Lutia me chamou na manhã de hoje.
Vou acompanhar Caius na sua colheita da tarde. Pedi que ele me explicasse algumas coisas sobre a vila e ele me disse que no caminho, nós conversaríamos.
Ainda não sei como enviar esta carta. Caius disse que eu só precisava deixá-la com Lutia, que ela se encarregaria do resto. Pra falar a verdade, é um alívio que eu só tenha pouco pra escrever. Acho que me desacostumei e minha mão já estava incomodando.

Saudações,

terça-feira, 17 de abril de 2007

Carta de Partida

A quem interessar possa,

Existe uma boa razão para eu ter deixado de escrever coisas aqui nas últimas semanas. É um motivo, admito, um pouco fraco, mas não é tão tíbio a ponto de não merecer ser mencionado. A questão é que eu estava a me preparar para uma viagem um pouco longa.
Embora eu só tenha decidido o destino há poucas horas, sinto-me confiante pra partir, posto que viagens cujos rumos foram decididos nos últimos segundos costumam ser mais proveitosas do que aquelas muito planejadas, já que se parte sem saber direito aonde se chegará, sem criar expectativas grandes demais ou iludir-se com espetáculos de marionetes e manequins nas televisões e nos pôsteres.
De fato, eu já queria viajar desde o começo deste mês, só não sabia como fazê-lo e aonde ir. Os dois problemas principais resolvidos, restava-me apenas os preparativos óbvios para esse tipo de empreitada e tocar para a estrada, munido do que pudesse me ajudar e me manter bem, como livros e meios de escrever, visto que sou um que precisa dos livros, com o estilo de escrita de quem já se foi e de quem é, e de cadernos, para deixar marca do enxame de pensamentos que poucos ousam capturar em uma finas folhas de papel, visto que são como fogo, que não importa o momento, marcam e ferem de modo permanente.
Então, é isso. Escrevo outra vez quando chegar em meu destino. O fato é que o lugar é perto e longe ao mesmo tempo. Então, não sei quanto tempo demoro em rota.
Como foi que disse ele mesmo? "O que importa é a viagem, e não o destino"? Que seja assim, então. Ouvi dizer que é uma terra diferente da nossa pra onde vou, um lugar onde conceitos filosóficos modernos não chegarão jamais a ser explorados. A saber.
Até a próxima,

sexta-feira, 23 de março de 2007

Crítica à Arrogância/Apologia à Humildade

[Recomendado ler isto antes:
Crítica à Humildade/Apologia à Arrogância
Sim, um dia antes para compensar o dia depois da última vez.]

Advogado do Diabo

"Membros do Júri. O meu colega acaba de expôr perante todos nós um discurso magistral. Com palavras precisas e vocabulário floreado, o defensor se transformou, ao mesmo tempo, em vítima e acusador. Sim, posto que ele se defendeu do crime que lhe foi apontado demonstrando que este não era crime e que os malfeitores eram outros, os opostos dele.

Contudo, amigos, tudo que meu companheiro proferiu aqui não passou de uma elegante ficção, do tipo que nos diverte e nos ludibria pela sua beleza, distraindo-nos da nulidade de conteúdo que possuem. Apesar de tudo isso, toda essa ilusão, continuam a ser apenas uma obra de imaginação.

Com sua tese decorrida, passo eu ao papel de réu principal, visto que sou, na definição de muitos, um humilde. E não o humilde do politicamente correto, um eufemismo insolente para pobre, digo insolente porque os ricos também são capazes de humildade e os pobres de arrogância, uns mais que os outros, e não menos comuns.

Embora minha fala seja composta de certas palavras incomuns à fala da maioria dos meus conterrâneos, não falo deste modo por ser arrogante, como meu colega, mas por ser natural de minha índole falar e escrever assim.

O arrogante defendeu-se dizendo que, muitas vezes, aquele que chama de arrogante o outro e que se considera humilde não passa de um arrogante em si, um tolo que se acha superior aos outros. A partir deste fato, ele demonstrou exemplarmente que os humildes, em verdade, são piores, e muito, do que os arrogantes.

A falácia neste jogo de raciocínio é tão bem construída que mesmo eu, humilde, passei alguns instantes estupefato, revisando minhas ações, minhas palavras e meus pensamentos, atrás de uma pista significativa de minha suposta arrogância.

Contudo, este é um problema análogo a outros de definição, que são nada mais do que uma maneira fútil de enquadrar tudo em poucas palavras, transformar o complexo em simples e, maniqueisticamente, definir em preto ou em branco todas as cores do mundo.

Vou transferir, pois, os adjetivos, e tratar do bem e do mal, para, logo depois, voltar a este caso. Permitam-me esse artifício, pois que não sou capaz de explicar de outra forma.

Imaginem, capazes somos todos disso visto que fomos todos crianças, se os homens viventes na Terra acreditassem que o mal fosse o bem e o bem fosse o mal. Atacar um indefeso fosse tido como bom, dar comida a um desbrigado, mau.

Oras, se um homem ajudasse um outro a se levantar, logo lhe taxariam como maligno, mesmo que ele estivesse a dizer: "Meus amigos, ouçam o que lhes digo: a verdade é que agir assim como ajo é que é bom e vocês, de fato, são maus.". Oras, esse homem seria visto como mau, apesar de ser bom.

O que quero provar com isso? Que independente do rótulo que aplicarmos aos outros, a real natureza do indivíduo é definida em uma outra esfera, livre de qualquer julgamento tendencioso dos pobres homens, que falham mais do que acertam.

Assim, voltemos ao caso do humilde e do arrogante. O homem humilde que aponta ao arrogante o que considera seu erro, a arrogância, pode ser um de dois tipos:

- O humilde, na verdade, é um arrogante em si, e suas palavras servem apenas para alimentar seu gigantesco ego, sentindo-se superior aos espíritos inferiores, incapazes de enxergar o verdadeiro caminho e se tornarem humildes, coisa que ele mesmo não o é, ironia da vida.
- O humilde realmente é humilde. É bem verdade que hoje em dia temos um conceito distorcido da verdadeira humildade. Apesar da raiz muito parecida, humildade não significa apenas se humilhar perante os outros. O humilde é aquele que procura fazer o que é correto a seu ver e não fica se vangloriando disso ou procura oportunidades de demonstrá-lo. Nosso homem humilde, que apontou a arrogância do arrogante, queria apenas fazer o que acreditava ser certo, mostrando-lhe sua falha e esperando que ele melhorasse. Com isso, não queria que o vissem como humilde e melhor, mas apenas que o outro vivesse como ele e fosse feliz como certamente só um humilde pode ser.

É bem verdade que há grandes chances de que o homem que aponta a arrogância do arrogante seja apenas mais um arrogante. Contudo, a combinação das virtudes da humildade e da bondade não é de todo rara, em verdade, é comum quando se consegue encontrar uma, a muito custo no mundo de seis bilhões e meio de sombras, encontra-se logo a outra, de mãos dadas, dentro do mesmo ser.

O humilde procura viver na verdade, e não perder tempo tentando convencer os outros de suas capacidades. Para o humilde, agir é mais importante do que certificar sua ação perante olhos estranhos.

Não espero que vós, membros do júri, concordem comigo, pois o discurso do arrogante é de uma beleza ímpar. Espero apenas que ouçam minhas palavras e carreguem-nas consigo, julgando interiormente quais destas atitudes, a humildade ou a arrogância, serve-lhes melhor.

Quanto a mim, gostaria de seguir minha vida humilde, pois assim sou feliz. Se quiserem, expôrei minhas opiniões sobre o que me pedirem e sempre fornecei a ajuda que me requisitarem. Contudo, se for da sua vontade não trocar outra palavra comigo, que assim seja, posto que vós deveis pensar no que será melhor para vós mesmos, dado que Deus, o Criador do céu e da terra, dotou a todos nós de inteligência e sabedoria suficiente para usar de nosso livre-arbítrio do modo que acharmos mais justo.

Em silêncio, aguardo sua decisão."

[Realmente complicado, isso. Agir como oposto. Mas foi até divertido. Só não acredito que está à altura do meu colega e opositor, # 0, da Troubleshooter S/A .]

domingo, 18 de março de 2007

O Quinto Filho

[Sim, eu sei, uma semana e um dia atrasado. Acontece. Minhas desculpas, minha dezena de leitores.]

Bem, eu tenho quinze temas armazenados para posts no meu computador. Alguns bem desenvolvidos, outros ainda em fase de preparação, mas, no geral, temas interessantes, ao meu ver. Contudo, eu aprecio muito a aleatoriedade, o acontecimento de um evento inesperado, e gosto de utilizar esse eventos.


Pois muito bem, eis que eu estava sentado na faculdade, assistindo a aula de Cálculo III, quando olho para o garoto sentado ao meu lado. Um garoto normal, que muito pouco ou nada interessaria a uma pessoa qualquer, exceto por um detalhe que realmente me chamou a atenção, embora eu não seja jamais parâmetro para pensar em pessoas normais, e me orgulho disso.

A característica que me chamou a atenção não era sequer do garoto em si, e sim, do estojo dele, de cor preta e com algo escrito, como um desses que você encontra em cima das carteiras verdes dos meninos do primário. Por algum motivo, o que tava escrito ali capturou meu pensamento.

ISSACHAR

ISSACHAR IS A RAWBONED DONKEY L-
YING DOWN BETWEEN TWO SADDLEBAGS

Da forma que foram colocadas no estojo, ficavam as palavras organizadas em duas linhas bem alinhadas, onde o hífen coincidia com o 's' final de "saddlebags". Uma tradução livre do que aí está seria "Issacar é um burro forte sentado entre dois fardos", é claro, transladando o significado, e não as palavras em si, que é melhor que se passe o significado em palavras próprias da língua receptora do que traduzir tudo ao pé-da-letra e ficar com uma frase sem o mesmo impacto no leitor da versão traduzida do que teria no leitor da versão original.

Quem é Issachar? Por quê um "rawboned donkey"? Que frase é essa, pra estar num estojo?

E isso me martelou e há quinze minutos, no meio de todas as inutilidades da Wikipedia, eu lembrei de procurar. E descobri que já tinha lido sobre Issacar, em português, há alguns meses, quando li o primeiro livro dos setenta e dois. Gênesis.

Issacar é o quinto filho de Jacó e essa é a frase que Jacó usa para profetizar sobre o futuro do filho e da descendência do mesmo, na forma da tribo de Issacar, uma das doze componentes da Monarquia Unificada e, mais tarde, uma das dez do Reino de Israel.

E qual era o real significado disso? Ninguém ficaria feliz de ser chamado de burro... então, por quê isso era bom para Issacar?

Pesquisando e pensando mais um pouco, acredito que compreendi o agouro do pai. Um bom agouro, na verdade. Um burro é um animal que trabalha nas situações mais extenuantes, carregando pesados fardos, sem reclamar. Contudo, é também um animal 'sensato', que entende seus limites e compreende a situação em que se encontra. Por isso, no momento em que se vê enredado em um trabalho além da sua capacidade, um peso acima do seu limite ou um caminho que leva à ruína, o burro decide que o melhor a fazer é simplesmente sentar e ficar parado no mesmo lugar.

Jacó, assim, quis dizer que Issacar e seus descendentes seriam trabalhadores fiéis, para quem não haveria tempo ruim. Porém, eles saberiam a hora de parar e largar os dois fardos que deveriam carregar, entendo que isso não levaria jamais a um bom resultado.

O que isso tem a ver com qualquer coisa? Nada. Só achei interessante.