quarta-feira, 30 de maio de 2007

Primeiros Raios

A quem interessar possa,

Depois dos eventos de anteontem, dormi pesadamente durante várias e várias horas um sono sem sonhos, mergulhado numa escuridão profunda, mas calma, sem sentidos e sem temores, como se estivesse vagando para sempre dentro de uma canoa por um lago eterno e estático.
Abri os olhos lentamente e fiquei deitado por mais uns minutos, até que senti vontade de me levantar e descobrir, enfim, o que acontecera ao mundo enquanto eu estive ausente. Caminhei lentamente pelo corredor, desci as escadas e encontrei Lutia e Caius sentados à mesa de madeira, conversando. Ela interrompeu uma frase, foi em minha direção, passou a mão pela minha testa, como fazem as mães com as crianças pequenas e perguntou-me se estava tudo bem.
Lembro precisamente de ter me perguntando por que eles não tinham filhos, mas deixei de lado a questão e respondi que estava me sentindo melhor, mas que queria saber mais sobre o que tinha acontecido. Ela olhou significativamente para Caius, que assentiu com a cabeça e fez gesticulou, indicando que nós nos sentassemos em uma das três cadeiras. Lutia retornou ao seu lugar, diametralmente oposto ao de Caius, e eu me sente do lado dela e em frente a ele.
- Há sete anos atrás, um grupo de uma outra vila, vinda de uma área diferente da nossa, assentou-se no vale que fica a meio dia de viagem daqui. Os homens dessa vila são muito mais bélicos que os nossos, ainda que pertençam ao mesmo povo. Não são nossos irmãos, mas nossos primos. Eles vieram até aqui atrás de nossos recursos, pois apesar do pouco tempo, já criamos um sistema muito eficiente de captação, várias vezes melhor do que o primitivo deles. Em busca desse sistema e do material bruto, ontem, à noite, eles chegaram em nossa vila, levaram barro, madeira, ferro e cereais e mataram nossa guarnição simbólica.
Nesse ponto, Caius fez uma pausa para respirar e pegou em um copo de cerâmica, com um líquido ocre de cheiro forte, e bebeu em um só gole o que havia no recipiente. Pousou o copo novamente na mesa, passou o polegar esquerdo por uma ranhura da madeira bruta e voltou a me olhar, continuando.
- Nós já sabiamos que isso poderia acontecer. Aliás, os dois legionários, Polis e Salito, mortos ontem, - à menção disso, ele fechou os olhos brevemente, então, não tenho certeza se viu quando eu comprimi meus lábios e apertei com força minha mão direita que repousava sobre a mesa - também sabiam que um ataque era uma possibilidade palpável. Nós os enterramos hoje com glórias, apesar das máculas lançadas sobre os corpos deles.
Ao falar isso, Caius levantou-se e andou um pouco na direção da porta, de costas para mim e para Lutia, que também se levantou e se encaminhou para a cozinha. Com a mão estendida em direção a, mas sem tocar nela, ele concluiu dizendo.
- O Herói chegará em alguns minutos. Você pode me acompanhar até à praça do edifício principal, para recepcioná-lo. Acredito que ele virá acompanhado de uma companhia de trinta legionários, trinta pretorianos, trinta imperianos e dez equites caesaris. Isso deve ser o suficiente para refutar os ataques dos habitantes dessa vila de que falei, Jarki.
Juntos, chegamos até a praça central. De relance, espiei o quartel, que tinha um pano branco muito longo estendido pela sua parede lateral e por parte do terreno ao lado. Não vi armas ensangüentadas, cadáveres estendidos ou nada daquilo que pulsava na minha mente sem cessar. Somente o longo pano branco.
Reunidos, estavam mais de trinta homens, quase a metade da população da vila. Não avistei o residente em lugar algum, mas notei uma construção que até então não tinha observado. Uma espécie de castelo miniaturizado, com uma pequena torre, feito de pesadas pedras de granito, muito limpo e vistoso, com uma flâmula amarela pendendo de uma das janelas, o símbolo de uma besta mitológica de duas cabeças, uma de leão, no plano frontal, e outra de cobra, no plano posterior, e de corpo de cavalo, com duas caudas que lembravam as ofídicas.
No momento, devo interromper meus escritos. Em breve, retomarei-os.

Saudações,

terça-feira, 29 de maio de 2007

Uma Faca no Escuro

Aqip,

Parece que fazem meses que eu não escrevo. Não devido ao tempo em que fiquei sem escrever, mas por causa dos eventos que ocasionaram isto. Confesso que estou mais abalado do que achei que deveria estar, mas não há o que se fazer, eventos inesperados provocam reações inesperadas. Esta aí uma citação que eu não quero que façam minha.
Poucos dias após nossa visita à casa do residente, eu acordei com uma sensação estranha. Talvez vocês não a conheçam, mas a identifiquei como sendo aquela característica dos que não estão no lugar certo. Já se passou mais de um mês desde que eu cheguei a esta vila e tenho vivido como se não tivesse mais nada que fazer exceto aproveitar a hospitalidade de Caius e Lutia.
De fato, parando pra pensar agora, nem sequer perguntei por que eles me abrigaram de uma forma tão acolhedora, sendo eu um estranho completo, ou ainda, um forasteiro desprovido de qualquer interesse em especial. Talvez haja mais neles do que os olhos podem enxergar. Ou em mim, não sei.
Em vez de acompanhar Caius para a colheita, resolvi ficar na casa, conversando com Lutia. Ela me contou que tinha três irmãos, dois mais velhos e um mais novo, e uma outra irmã, mais nova. Os nomes deles ela me disse, mas sinceramente, não estava tão atento a ponto de lembrar-me agora.
Também me contou como ocorrera o casamento com Caius. Para minha total surpresa, Caius também era um forasteiro, disse-me Lutia sorrindo, um homem forte e sorridente que um belo dia apareceu caminhando pelos campos, parou na casa do pai dela e pediu trabalho. Eles logo se enamoraram e, após alguns anos, ambos partiram para fundar uma nova vila junto com alguns pioneiros, como era tradição de seu povo.
Perguntei a ela se era tradição acolher forasteiros entre eles e ela me explicou, com um sorriso esguio, que tradição, exatamente, não era, mas que éramos, nós, os forasteiros, tão raros que quando aparecia um, eles faziam de tudo para tratá-los adequadamente.
Comemos e aprendi mais sobre o vilarejo e seus habitantes. Descobri, pois, que o fluxo de migrantes era contínuo e quanto maior a vila, mais gente vinha, num processo cíclico, até que parte deixava suas casas para fundar uma nova vila, sob o comando de um subresidente, designado pelo residente da vila. Soube, pelos lábios dela, que se comprimiram de uma forma expressiva, apesar da voz negar, que a impressão que o residente lhe causava era mista de poder e repulsa. Sentimentos comuns, acho, para aquele tipo de pessoa. Por um segundo, talvez por maliciosidade, pensei ter visto um esgar de descontrole sobre si mesma, como se não fosse possível reprimir um sentimento de força máxima. Amor ou ódio, acredito. Realmente, há mais nessa mulher do que os olhos enxergam.
O sol não tardou a se pôr e as primeiras estrelas surgiram. Não sei se notei isto antes, mas elas brilham com uma intensidade sem par nesse lugar, piscando às centenas, não, aos milhares. Sob o rumo das estrelas, mas sem lua, vimos os dois Caius chegar dos campos, balançando um alforje por sobre a cabeça. Este continha várias moedas finas de prata, com um brasão incrustado em um dos lados e uma efígie no outro. Soubesse eu mais de heráldica ou ainda de numismática, seria capaz de dizer qualquer coisa que não o que me contaram, que se chamam pratas, simplesmente.
Fomos dormir, mas não o sono dos justos. Durante o meio da noite, fui acordado por um barulho constante. Parecia ser uma espécie de música, um compasso marcado que ia crescendo pouco a pouco, mas permanecia muito, muito baixo. Depois de algum tempo, de olhos bem fechados, tremendo de medo e incerto se estava acordado ou sonhando, consegui identificar parte do canto - "a marcha da noite não cessará, espadas e lanças, cavalos e escudos, a morte e a vida nos elevará, os oito devem ser respeitados, encontrados, saqueados e adorados...".
Fiquei hipinotizado, acho, por minutos sem fim, até que levantei-me assustado, compreendendo que aquelas não me eram vozes familiares e parecia uma canção de guerra. Abri minha porta rapidamente, apenas para ser empurrado pra dentro, com minha boca tapada pela mão de Lutia, um olhar tão sério que me desarmou e não tive outra reação que não sentar ao chão e esperar as palavras dela.
Cale-se, disse-me, cale-se ou todos morreremos. Fique quieto no seu quarto e não saia, não importa o quê. Caius e os outros já estão cuidando disso. O Herói foi convocado, mas só chegará daqui alguns dias. Assenti com a cabeça e esperei cinco minutos do momento em que ela fechou a porta. Então, abri-a vagarosamente e, pé ante pé, andei o corredor de madeira e desci a escada colado à parede, para não fazer barulho. Agachado, abri a porta de entrada cuidadosamente, de modo a fazer o menor barulho possível e congelei por duas vezes, quando achei ter escutado vozes próximas demais.
Olhei pra fora e, iluminados pela luz das estrelas e do céu sem lua, estavam vários homens, soldados armados de espadas e escudos, com três homens montados em cavalos marrons. Embora esses pareciam mais aptos a guerrear, o capitão aparentava ser um homem que estava quase trajado como os outros da infantaria, exceto pelas cor preta de sua capa, contrastando com o vermelho da capa dos outros, e armadura e espada mais brilhantes.
Procurei com os olhos, sem me mover, o quartel dos legionários da vila e o que testemunhei não poderia ser recriado em cem anos pela minha imaginação... os soldados inimigos rodeavam dois cadáveres, despidos completamente, as armas e armaduras banhadas em sangue. As cabeças deles eram jogadas de mão em mão, chutadas e pisoteadas, cuspe e urina por toda a face. Os olhos e as línguas haviam sido arrancados, trespassados por lança e estacados no coração dos corpos.
Fechei a porta e, rastejando, voltei para meu quarto, apertei os olhos, para fazer com que aquelas imagens terríveis desaparecessem e passei o resto da noite empapado em suor e lágrimas, amaldiçoando minha incapacidade de lidar com a crueldade daqueles homens. Sem mais agüentar, levantei-me derrotado, sentei à minha cadeira, acendi uma vela e resolvi, por fim, escrever essa carta e deixar registradas a minha covardia e a minha vergonha.

Saudações,

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Aviso ao Residente

Aqip,

Se minhas palavras chegam aos olhos de cinco, já é muito. Mas não preciso de mais, contudo. Gostaria, é certo, mas não preciso. "Navegar é preciso, viver não é preciso". Agora que entendi o significado dessas palavras, fica difícil não utilizá-las sempre que posso.
Enfim, escrever é uma coisa que me deixa feliz, de alguma forma. Sempre acho que posso fazer melhor, claro, mas me deixa feliz de um jeito ou de outro. A razão, bem, a razão é tão simplória que até fico um pouco receoso de escrever: é que gosto que os outros saibam o que penso. Apenas isso. É que escrevo melhor do que falo. Não nasci com o dom da oratória. Não falo pior do que a média da nossa terra, mas isso, em si, quer dizer pouco ou nada.
A carta de hoje é bem mais objetiva do que a da última semana, acho. Ainda não a escrevi. Mas penso que será assim porque, na última semana, estive eu doente de verdade. Não entendi ainda muito bem porque, mas, aos poucos, acho que compreenderei. Enfim.
No dia seguinte à minha recuperação, acordei bem cedo. Antes até do que Lutia e Caius, alguns minutos mínimos, dois, quinze, mas o suficiente para que ficasse olhando o céu no horário em que não é nem manhã nem noite, o céu que assume uma cor difusa, um azul, roxo, com um pouco de vinho. Complicado descrevê-lo, mas quem o conhece, conhece. Já a hora, é aquela hora em que as coisas estão em silêncio, o frio é denso e você pode sentir o vento a cortar-lhe caminhos, o ar que se respira é, realmente, revigorante, algumas pessoas caminham pelas ruas vazias, em seus casacos bem fechados, com um meio-sorriso no rosto quando lhe passam o caminho, o pensamento bem, é, eu também acordei cedo, aqueles que dormem são os inocentes que não vivem.
Ao escutar os passos de Lutia no chão de madeira do corredor, fechei meus olhos para fingir que estava dormindo e simulei o melhor que pude a respiração de alguém desacordado. Tolice minha, acreditar que uma mulher seria enganada por um artifício tão ingênuo. Ela simplesmente abriu a janela sobre minha cama, separou-me uma roupa e, ao abrir a porta para sair, disse-me, sem virar o rosto, 'Bom dia, viajante. Mais quinze minutos aí e Caius lhe deixa pra trás'.
Não há, afinal, como enganar as mulheres de quem gostamos, acho eu.
Vestido, encontrei-me com Caius na sala. Ao contrário dos outros dias, a mesa de madeira sólida não estava coberta por uma toalha de cor beje, mas nua. Ante o meu olhar pensativo para a mesa, Lutia respondeu-me 'Vocês comerão com o residente da vila'.
Já estava a me dirigir para a carroça, quando Caius me gritou, no portão da casa, 'Apressado, hoje, não vamos por carroça. Vamos caminhar. Faz bem de vez em quando, ainda mais para quem acabou de se levantar de uma doença'. De certa maneira bem-disposto, caminhei até o seu encontro e passamos a andar. A vila em si estava iniciando sua vida, voltando, como eu, da morte.
Posso descrevê-la, mas não é interessante, de fato. Algumas casas, parecidas com a de Caius, algumas pessoas, de feições que lembravam as de Lutia, mas não a de Caius. Ainda não o descrevi, eu sei, mas é que alguma coisa me falta pra fazê-lo, algum lugar onde já vi uma expressão como a dele, alguma pessoa que conheci que era semelhante. Não posso descrevê-lo incompleto, sem essa singularidade de semelhança que preciso apontar. Desculpe-me a descrição, mas ela vai esperar eu me recordar. "Recordar é viver"... hmmmmm....
Um armazém, em reformas de ampliação, assim como um celeiro. Um pequeno quartel, com dois soldados, muito semelhantes ao resto dos aldeões, exceto pela pequena espada de ferro, nada ameaçadora, e um elmo de ferro amassado. Representantes do poder central, provavelmente. Pensara em poder central vagamente, pois que eu não fazia a menor idéia de como era governado o lugar.
A um dado momento, enquanto eu estava distraído com minha imaginação, Caius interrompeu sua caminhada, ação que secundei. Olhei para a direita e vi a segunda maior moradia da vila, perdendo apenas para o edifício central, em torno do qual todos construíam suas casinhas, numa ordem impressionante. Meu companheiro estava apenas olhando a porta, de madeira polida e brilhante, calma, mas compenetradamente, e eu me peguei perguntando se ele telepaticamente iria ordená-la abrir-se, quando aconteceu que esta de fato abriu. Entramos.
A casa do residente, de três andares e com uma pequena torre, feita de pedra, diferente do resto da vila, que era primariamente de madeira, era acolhedora por dentro. Peles de animais selvagens pelas paredes e quadros com pinturas da natureza. O mais rico da aldeia, com absoluta certeza.
Caminhamos pelo corredor até uma sala, onde uma bela mesa de pés trabalhados e lugares para oito pessoas, duas à cabeceira, três de cada lado, dominava o espaço, que contava também com um aparador de cor e madeira idênticas, um quadro do que deveria ser uma besta mitológica, um grande felino de oito patas, sobre uma pedra, e um tapete de pele com padrão tigrado. Bonita.
A tal mesa estava posta, com lugares para sete convivas. Nós dois devíamos estar ou atrasados ou eles adiantados, porque cinco já estavam sentados. Dois homens, com cabelos tão parecidos com os de Lutia, embora curtos, que, se convidado a julgar, coisa que jamais seria, acho, diria que eram parentes próximos, irmãos talvez, duas mulheres já não tão belas quanto Lutia, mas com um sorriso afável e um outro homem à cabeceira. Este homem, em especial, petrificou-me por instantes.
Suas feições e seu olhar eram serenos, mas próprios da aristocracia, como um ser superior entre súditos especiais que fizeram por merecer a sua presença. Sua compleição era mais delicada e mais clara do que a dos outros habitantes da aldeia, como a minha própria era. Seus lábios eram finos e o nariz, ligeiramente adunco, combinava soberbamente com os olhos negros e estáticos. Os cabelos eram ondulados e curtos, muito bem aparados. No geral, era uma figura imponente pela firmeza dos traços e, honestamente, um homem belo.
Ele pousou seu olhar sobre mim por uns tantos instantes e ouvi sua voz, convidativa, mas com um tênue tom, ou talvez era minha impressão, acho que não, de agressividade passiva, pedindo que eu me sentasse em um dos dois lugares vagos, que Caius ocuparia o outro.
Passamos nós à refeição, e, para falar a verdade, ninguém conversou comigo, mas não me importei. Fiquei entretido observando a relação entre os outros e o anfitrião. Era como estivessem em uma partida de um jogo, o anfitrião era jogador e árbitro ao mesmo tempo, mas mudava as regras ao seu bel-prazer, fazendo com que os outros convidados tivessem que se esforçar de maneira visívil para se manter nas regras. Pensei notar duas ou três vezes um brilho de satisfação em brincar assim nos olhos do residente, mas não me foi possível averiguar se assim o era, porque ele logo reassumia seu aspecto opaco e distante.
Depois de comermos, todos os outros foram embora e ficamos sós, o residente, Caius e eu. Ele fez um gesto leve com a mão esquerda e indicou-nos uma sala adjunta, com quatro poltronas revestidas de pele de animais também, com uma jarra de vinho e três cálices de um metal dourado. Sentei-me em uma delas e aceitei, por cortesia, o cálice que ele levou às minhas mãos. Era uma bebida doce, saborosa, realmente, como fora a comida que tivemos, quase sem a marca indelével do álcool. Claro, se não a tivesse, não seria indelével. Retomando.
Ele nos olhou placidamente, não como um cordeiro, mas como um felino, e nos falou, numa voz tão calma que nem pareciam partir as palavras que ele diziam da boca do residente:
- De fato, os convidados muito se alegram por virem aqui. São pessoas boas, afáveis, mas simples, comuns, ordinárias. Entretenho-me por um dia e nada mais. Acontece muito. Normalmente, escolho um em especial. A ele, dedico meu tempo e minha vontade, enalteço suas características boas e diminuo suas falhas. Ajudo-o como posso, passo-lhe a mão em carinho e sorri-o com ternura. Cativo-o e sou por ele cativado.
A esse ponto, ele fez uma pausa, sorveu um gole do vinho e suas pálpebras baixaram um pouco, sem que fechassem-se os olhos. Ele fez um baixo múrmurio com os lábios, afastou o cálice da boca e continuou.
- Sim, cativo-o e sou por ele cativado. Como disse, ele é especial para mim e faço o possível para sê-lo para ele. Contudo, assim como a árvore que cresce no meu jardim, os homens que trabalham nos poços de barro lá fora e a minha gata, deitada no telhado desta casa a se aquecer, eu conheço bem minha natureza. Sei quais são meus instintos básicos e sei, também, as motivações do que faço. Sou um sistema em equilíbrio, por assim dizer. A verdade é que eu sei que estou a me distrair em um jogo, prazeroso, verdade, mas como qualquer brincadeira, uma só perda de tempo em troca de diversão. Logo, semanas, meses ou anos, não importa, pra falar a verdade, acabo por cansar da rodada. Passo por todo o processo de separação, com a tristeza e a dor que lhe cabem, verto lágrimas tão sinceras que enganariam o mais sábio dos homens. Não sou o maior de todos os sábios, então sei que as lágrimas, que quase me enganam, são falsas, ainda que verdadeiras.
Enquanto ele sorvia mais um gole de seu vinho, aproveitei para olhar, discretamente, para Caius. Ele olhava nosso anfitrião com um olhar inexpressivo. Teria já escutado esse discurso?
- São verdadeiras, porque eu realmente estou sentindo a falta desse de quem me despeço. São falsas, contudo, porque eu sei, minha natureza, que eu só estava jogando para me distrair e que nada daquilo foi verdadeiro. Para os meus olhos, a chuva e o sol tanto fazem, porque não me importam verdadeiramente. A minha natureza é semelhante à da minha gata, que se tem em tão alta estima que nada realmente lhe afeta o orgulho de si mesma. Logo, logo, ela encontra outra coisa e eu, outro homem a quem me ligar e de quem partir quando cansar.
O residente pousou seu cálice na mesa de centro, da mesma madeira da mesa da sala anterior, fitou-me com um olhar menos seco e opaco e vezes mais instigante e disse, afinal, e as palavras me ficaram bem marcadas, de modo que não foram deturpadas pela memória:
- Sou o residente desta vila e ajo de uma maneira sensata, de acordo com a visão daqueles que sabem. O viajante é bem-vindo em nossa pequena aldeia, mas recomendo-lhe visitar também outras paragens. Nossa terra é muito rica em governantes diversos e o poder central, que estou certo de que desconhece, só aparecerá depois de muito ver. Quanto aos acontecimentos a se seguirem, não sou vidente para sabé-los com certeza, mas assim como um jogador experiente, tenho a idéia correta. Lembre-se da máxima 'em Roma, como os romanos'.
Caius levantou-se e eu o segui, calado, até a casa. O resto do dia foi desinteressante, provavelmente porque o residente me causara tão forte impressão. Sinto-me até este momento um pouco desnorteado e creio não saber que farei amanhã.
Saudações,

domingo, 6 de maio de 2007

Delirium Moris

Aqip,

Sinto muito por ter me demorado a escrever desta vez. A explicação é o próprio título desta, o delirium moris como vim a saber mais tarde. Relendo a última coisa que escrevi, posto que mantenho uma cópia de tudo que escrevo em um caderno a mim confiado por alguém deveras importante, não precisamente para esta história, mas para uma outra, muitas vezes mais interessante, não uma cópia através de copiadoras, como pode saltar logo à mente de estudantes do ensino médio e superior, tão comum e difundida é a prática, ainda que ilegal, em sua intrínseca forma utilizada nas casas do saber, as tais universidades, mas realmente reescrevendo tudo, não com a mesma letra, claro, porque canso-me rápido de escrever, não quero dizer que me chateio, mas que realmente canso-me fisicamente, mas tento não errar sequer uma vez, para manter a beleza e a uniformidade.
Depois do que Caius me falou, não tive a coragem, admito, de tocar no assunto. Eu estava instigado, sim, com as idéias dele, e queria argumentar, mas me era impossível. Percebo agora uma falha gravíssima, que tentarei corrigir de agora em diante. Nunca cheguei a descrever Caius corretamente. Mas isto é porque não havia prestado especial atenção à aparência dele, visto que, em geral, concentro-me tanto nas idéias de uma pessoa que a aparência me é secundário, porque pouco me importa, ainda que me importe um pouco, o envólucro onde está um conteúdo sublime ou, francamente, patético, e este último tipo há que se tomar cuidado, porque os patéticos costumam gerar pena nos mais fracos de sentimento, e isso não é sentimento que se deva ter, ao menos, não para quem não merece.
Estávamos nós voltando na carroça dele, esta também não muito bem descrita, de madeira de uma cor clara, não brilhante e reluzante como as suas respectivas camas, mas de um material bruto e resistente, com vários nós aparente formando círculos sinceramente entretenedores para aqueles que se perdem nos próprios pensamentos, atrás iam as rudes ferramentas dele, um espaço uns três metros de largura por dez de comprimento, rastelos, pás e enxadas, todos de cabo de uma madeira escura, bem gasta, a enxada em especial com marcações seguidas de traços partindo da metade do cabo até a base, sem muita regularidade entre si, duas fileiras opostas simetricamente, mas não igualmente, visto que uma começava mais em cima e a outra terminava mais em baixo. A carrroça estava cheia de feixes de cereal que caio passara a tarde inteira colheitando, a foice também ali estava, não a foice como costumam retratar aqueles desenhistas e pintores que imaginam a morte uma caveira encapuzada de preto com aquela terrível gadelha, disse o Saramago, não, mas uma foice claramente muito utilizada.
Estávamos nós voltando, ia eu escrevendo, quando os sons começaram a me parecer difusos e eu não conseguia mais ver com toda a clareza, o entorno do meu campo de visão já estava embaçando e eu me forçava, piscando os olhos, tentando enxergar melhor, até que comecei a ouvir coisas estranhas vindo da boca de Caius, coisas que eu tenho certeza absoluta de que não poderia ele dizer, coisas a qual ele não tinha acesso, dizendo que a minha viagem devia ter sido complicada, porque eu não estava acostumado à passagem, mas que sempre é assim, ninguém está acostumado, de qualquer forma, é uma viagem só de ida, então não há com o que se preocupar, daqui, você faz outra, e outra, e assim em diante, rumo ao infinito, ele dizia, com uma voz calma, olhando para frente, segurando as rédeas, de couro, que guiavam a égua, com uma pontada de ironia nas últimas palavras, desmaiei.
Delirium Moris, hmmm..., Delirium Moris, é o que você tem, ou tinha, não sei dizer ao certo, tinha, disse uma outra voz desconhecida, pronto, aí está, tinha, não tem mais, é o que acontece quando a gente não toma cuidado, dana-se a perder o que se tinha, mas, nesse caso, o perdedor é o vencedor, ou o vencido, se o objetivo fora apenas derrubar e não aniquilar, era a voz de Lutia a ressoar do inferno, não, de algum lugar à minha esquerda, minha cabeça latejava terrivelmente, Delirium Moris, que diabos que fica repetindo, a voz de Caius agora, uma voz sonora, parecia-me estranha e agressiva e a dor continuava a me atormentar, se bem que não existe tormenta de um minuto, um minuto ou dez, ou quinze, ou uma hora inteira, não sei, minha boca está seca, gosto ruim, péssimo, devo ter dormido e devo estar doente, preciso me lavar, estou encharcado de suor, o cheiro me impregna e eu me sinto ligeiramente enojado das minhas próprias roupas, não de mim mesmo, posto que nunca se tem nojo das próprias reações naturais do seu corpo, ou das suas ações naturais, bem, isso se você não for um recatado consigo mesmo, tipozinho patético, enfim, recobrou-se?, Caius de novo, abri os olhos, vultos, fechei os olhos, dor, permaneci assim mais instantes, catorze, o quatorze, sempre mudo a forma que falo, nunca a que escrevo, catorze, é mais, não sei, certo, acho, para os meus olhos, não sei, acho que a forma original devia ser quatorze, mas catorze era mais fácil de escrever e sonoramente melhor, então ficamos com catorze, mesmo, catorze ou quatrocentos, não tem o mesmo efeito, quatorze ou quatrocentos anos, agora, sim, quatorze ou quatrocentos anos, não sei ao certo, reabri os olhos, luz de vela, tênue, mas uma agulha, cem, caindo do teto, entrando pela minha testa, inflingindo um mínimo de dor no meu cérebro, multiplicado por cem o mínimo se torna considerável, diminuir tudo em frações mínimas e somá-las, essa é a forma de saber o total, dizem, diz, Messier Euller, está morto, muito morto, séculos, abri os olhos de novo.
Vi Lutia. Ela não era uma mulher feia, não, mas não conseguia classificá-la exatamente, tinha uma beleza um pouco dura, soberano, capaz de causar medo e domínio. Tinha cabelos negros, alguns centímetros abaixo dos ombros, presos em um rabo-de-cavalo simples. Não usava qualquer outro tipo de adereço, sempre destido branco ou beje, ou outra cor cujo nome eu não sei, mas cujo tom varie entre o beje e o branco e que para mim, homem, é impossível distingüir tanto quanto para um cachorro ou um gato.
Ao seu lado, com uma barba negra bem aparada e vistosa, usando uma espécie de óculos com aro negro reluzente e um olhar distante, quase superior, de um maneira arrogante, quero dizer, estava um homem de roupas brancas, heh, esse prestou o juramento de Hipócrates, disse eu para comigo mesmo, mas acho que ainda estava sob efeito da doença, ele me respondeu sim, o prestei, oras, falei alto, afinal, falha minha.
Caius sentou-se ao me lado, em uma cadeira tosca de madeira, mas aparentemente nem desconfortável nem confortável, indiferente, neutro, e explicou-me, em voz baixa e muito mais amistosa do que aquela que eu delirei escutar ele utilizar na carroça que eu tinha sofrido de um mal comum a estrangeiro àquela terra, o Delirium Moris, assim chamado porque as pessoas que padecem disso costumam pensar que estão a morrer, as pessoas sempre estão a pensar que estão morrendo, sim, elas costumam, respondeu-me com um sorriso novamente um tanto melancólico, ele me pareceu estranho, um pouco como se me escondesse algo, todos têm segredos, sim, todos têm segredos, droga, falei alto de novo, que há comigo hoje.
Ele pediu-me que eu descansasse, amanhã seria um dia importante. Ante à minha expressão de honesta dúvida, ele se levantou, Lutia e o outro homem, médico, pois, já tinham saído, e, sobrou a candeia, dizendo, com essas exatas palavras, 'Vamos à casa do residente da vila'.
Tentei reproduzir tudo como acontecera, mas a memória completa com certos pedaços fantasiosos os momentos vivazes quanto mais eles se afastam, então, perdoem-me se há aí algo de sobrenatural ou incrível, tentei relatar exatamente o que aconteceu.
Escrevo na volta da casa do residente. Até.

Post-Scriptum - Lutia acaba de me informar que fiquei de cama três dias. Disse-me que eu me recuperei muito bem e me sorriu, para que eu me animasse. Ela é uma boa mulher, afinal, penso.