domingo, 6 de maio de 2007

Delirium Moris

Aqip,

Sinto muito por ter me demorado a escrever desta vez. A explicação é o próprio título desta, o delirium moris como vim a saber mais tarde. Relendo a última coisa que escrevi, posto que mantenho uma cópia de tudo que escrevo em um caderno a mim confiado por alguém deveras importante, não precisamente para esta história, mas para uma outra, muitas vezes mais interessante, não uma cópia através de copiadoras, como pode saltar logo à mente de estudantes do ensino médio e superior, tão comum e difundida é a prática, ainda que ilegal, em sua intrínseca forma utilizada nas casas do saber, as tais universidades, mas realmente reescrevendo tudo, não com a mesma letra, claro, porque canso-me rápido de escrever, não quero dizer que me chateio, mas que realmente canso-me fisicamente, mas tento não errar sequer uma vez, para manter a beleza e a uniformidade.
Depois do que Caius me falou, não tive a coragem, admito, de tocar no assunto. Eu estava instigado, sim, com as idéias dele, e queria argumentar, mas me era impossível. Percebo agora uma falha gravíssima, que tentarei corrigir de agora em diante. Nunca cheguei a descrever Caius corretamente. Mas isto é porque não havia prestado especial atenção à aparência dele, visto que, em geral, concentro-me tanto nas idéias de uma pessoa que a aparência me é secundário, porque pouco me importa, ainda que me importe um pouco, o envólucro onde está um conteúdo sublime ou, francamente, patético, e este último tipo há que se tomar cuidado, porque os patéticos costumam gerar pena nos mais fracos de sentimento, e isso não é sentimento que se deva ter, ao menos, não para quem não merece.
Estávamos nós voltando na carroça dele, esta também não muito bem descrita, de madeira de uma cor clara, não brilhante e reluzante como as suas respectivas camas, mas de um material bruto e resistente, com vários nós aparente formando círculos sinceramente entretenedores para aqueles que se perdem nos próprios pensamentos, atrás iam as rudes ferramentas dele, um espaço uns três metros de largura por dez de comprimento, rastelos, pás e enxadas, todos de cabo de uma madeira escura, bem gasta, a enxada em especial com marcações seguidas de traços partindo da metade do cabo até a base, sem muita regularidade entre si, duas fileiras opostas simetricamente, mas não igualmente, visto que uma começava mais em cima e a outra terminava mais em baixo. A carrroça estava cheia de feixes de cereal que caio passara a tarde inteira colheitando, a foice também ali estava, não a foice como costumam retratar aqueles desenhistas e pintores que imaginam a morte uma caveira encapuzada de preto com aquela terrível gadelha, disse o Saramago, não, mas uma foice claramente muito utilizada.
Estávamos nós voltando, ia eu escrevendo, quando os sons começaram a me parecer difusos e eu não conseguia mais ver com toda a clareza, o entorno do meu campo de visão já estava embaçando e eu me forçava, piscando os olhos, tentando enxergar melhor, até que comecei a ouvir coisas estranhas vindo da boca de Caius, coisas que eu tenho certeza absoluta de que não poderia ele dizer, coisas a qual ele não tinha acesso, dizendo que a minha viagem devia ter sido complicada, porque eu não estava acostumado à passagem, mas que sempre é assim, ninguém está acostumado, de qualquer forma, é uma viagem só de ida, então não há com o que se preocupar, daqui, você faz outra, e outra, e assim em diante, rumo ao infinito, ele dizia, com uma voz calma, olhando para frente, segurando as rédeas, de couro, que guiavam a égua, com uma pontada de ironia nas últimas palavras, desmaiei.
Delirium Moris, hmmm..., Delirium Moris, é o que você tem, ou tinha, não sei dizer ao certo, tinha, disse uma outra voz desconhecida, pronto, aí está, tinha, não tem mais, é o que acontece quando a gente não toma cuidado, dana-se a perder o que se tinha, mas, nesse caso, o perdedor é o vencedor, ou o vencido, se o objetivo fora apenas derrubar e não aniquilar, era a voz de Lutia a ressoar do inferno, não, de algum lugar à minha esquerda, minha cabeça latejava terrivelmente, Delirium Moris, que diabos que fica repetindo, a voz de Caius agora, uma voz sonora, parecia-me estranha e agressiva e a dor continuava a me atormentar, se bem que não existe tormenta de um minuto, um minuto ou dez, ou quinze, ou uma hora inteira, não sei, minha boca está seca, gosto ruim, péssimo, devo ter dormido e devo estar doente, preciso me lavar, estou encharcado de suor, o cheiro me impregna e eu me sinto ligeiramente enojado das minhas próprias roupas, não de mim mesmo, posto que nunca se tem nojo das próprias reações naturais do seu corpo, ou das suas ações naturais, bem, isso se você não for um recatado consigo mesmo, tipozinho patético, enfim, recobrou-se?, Caius de novo, abri os olhos, vultos, fechei os olhos, dor, permaneci assim mais instantes, catorze, o quatorze, sempre mudo a forma que falo, nunca a que escrevo, catorze, é mais, não sei, certo, acho, para os meus olhos, não sei, acho que a forma original devia ser quatorze, mas catorze era mais fácil de escrever e sonoramente melhor, então ficamos com catorze, mesmo, catorze ou quatrocentos, não tem o mesmo efeito, quatorze ou quatrocentos anos, agora, sim, quatorze ou quatrocentos anos, não sei ao certo, reabri os olhos, luz de vela, tênue, mas uma agulha, cem, caindo do teto, entrando pela minha testa, inflingindo um mínimo de dor no meu cérebro, multiplicado por cem o mínimo se torna considerável, diminuir tudo em frações mínimas e somá-las, essa é a forma de saber o total, dizem, diz, Messier Euller, está morto, muito morto, séculos, abri os olhos de novo.
Vi Lutia. Ela não era uma mulher feia, não, mas não conseguia classificá-la exatamente, tinha uma beleza um pouco dura, soberano, capaz de causar medo e domínio. Tinha cabelos negros, alguns centímetros abaixo dos ombros, presos em um rabo-de-cavalo simples. Não usava qualquer outro tipo de adereço, sempre destido branco ou beje, ou outra cor cujo nome eu não sei, mas cujo tom varie entre o beje e o branco e que para mim, homem, é impossível distingüir tanto quanto para um cachorro ou um gato.
Ao seu lado, com uma barba negra bem aparada e vistosa, usando uma espécie de óculos com aro negro reluzente e um olhar distante, quase superior, de um maneira arrogante, quero dizer, estava um homem de roupas brancas, heh, esse prestou o juramento de Hipócrates, disse eu para comigo mesmo, mas acho que ainda estava sob efeito da doença, ele me respondeu sim, o prestei, oras, falei alto, afinal, falha minha.
Caius sentou-se ao me lado, em uma cadeira tosca de madeira, mas aparentemente nem desconfortável nem confortável, indiferente, neutro, e explicou-me, em voz baixa e muito mais amistosa do que aquela que eu delirei escutar ele utilizar na carroça que eu tinha sofrido de um mal comum a estrangeiro àquela terra, o Delirium Moris, assim chamado porque as pessoas que padecem disso costumam pensar que estão a morrer, as pessoas sempre estão a pensar que estão morrendo, sim, elas costumam, respondeu-me com um sorriso novamente um tanto melancólico, ele me pareceu estranho, um pouco como se me escondesse algo, todos têm segredos, sim, todos têm segredos, droga, falei alto de novo, que há comigo hoje.
Ele pediu-me que eu descansasse, amanhã seria um dia importante. Ante à minha expressão de honesta dúvida, ele se levantou, Lutia e o outro homem, médico, pois, já tinham saído, e, sobrou a candeia, dizendo, com essas exatas palavras, 'Vamos à casa do residente da vila'.
Tentei reproduzir tudo como acontecera, mas a memória completa com certos pedaços fantasiosos os momentos vivazes quanto mais eles se afastam, então, perdoem-me se há aí algo de sobrenatural ou incrível, tentei relatar exatamente o que aconteceu.
Escrevo na volta da casa do residente. Até.

Post-Scriptum - Lutia acaba de me informar que fiquei de cama três dias. Disse-me que eu me recuperei muito bem e me sorriu, para que eu me animasse. Ela é uma boa mulher, afinal, penso.

2 comentários:

Anônimo disse...

das cartas, essa foi a que mais prendeu minha atenção. gostei. apesar da angústia que continuo sentindo ao lê-las.

Unknown disse...

Veremos aonde nosso viajante irá, agora que experimentou o delírio próprio daqueles que cruzam o portal talvez enxergue as coisas de outra forma. Talvez não.

Talvez quando acabar passe por Holy City.