sexta-feira, 23 de março de 2007

Crítica à Arrogância/Apologia à Humildade

[Recomendado ler isto antes:
Crítica à Humildade/Apologia à Arrogância
Sim, um dia antes para compensar o dia depois da última vez.]

Advogado do Diabo

"Membros do Júri. O meu colega acaba de expôr perante todos nós um discurso magistral. Com palavras precisas e vocabulário floreado, o defensor se transformou, ao mesmo tempo, em vítima e acusador. Sim, posto que ele se defendeu do crime que lhe foi apontado demonstrando que este não era crime e que os malfeitores eram outros, os opostos dele.

Contudo, amigos, tudo que meu companheiro proferiu aqui não passou de uma elegante ficção, do tipo que nos diverte e nos ludibria pela sua beleza, distraindo-nos da nulidade de conteúdo que possuem. Apesar de tudo isso, toda essa ilusão, continuam a ser apenas uma obra de imaginação.

Com sua tese decorrida, passo eu ao papel de réu principal, visto que sou, na definição de muitos, um humilde. E não o humilde do politicamente correto, um eufemismo insolente para pobre, digo insolente porque os ricos também são capazes de humildade e os pobres de arrogância, uns mais que os outros, e não menos comuns.

Embora minha fala seja composta de certas palavras incomuns à fala da maioria dos meus conterrâneos, não falo deste modo por ser arrogante, como meu colega, mas por ser natural de minha índole falar e escrever assim.

O arrogante defendeu-se dizendo que, muitas vezes, aquele que chama de arrogante o outro e que se considera humilde não passa de um arrogante em si, um tolo que se acha superior aos outros. A partir deste fato, ele demonstrou exemplarmente que os humildes, em verdade, são piores, e muito, do que os arrogantes.

A falácia neste jogo de raciocínio é tão bem construída que mesmo eu, humilde, passei alguns instantes estupefato, revisando minhas ações, minhas palavras e meus pensamentos, atrás de uma pista significativa de minha suposta arrogância.

Contudo, este é um problema análogo a outros de definição, que são nada mais do que uma maneira fútil de enquadrar tudo em poucas palavras, transformar o complexo em simples e, maniqueisticamente, definir em preto ou em branco todas as cores do mundo.

Vou transferir, pois, os adjetivos, e tratar do bem e do mal, para, logo depois, voltar a este caso. Permitam-me esse artifício, pois que não sou capaz de explicar de outra forma.

Imaginem, capazes somos todos disso visto que fomos todos crianças, se os homens viventes na Terra acreditassem que o mal fosse o bem e o bem fosse o mal. Atacar um indefeso fosse tido como bom, dar comida a um desbrigado, mau.

Oras, se um homem ajudasse um outro a se levantar, logo lhe taxariam como maligno, mesmo que ele estivesse a dizer: "Meus amigos, ouçam o que lhes digo: a verdade é que agir assim como ajo é que é bom e vocês, de fato, são maus.". Oras, esse homem seria visto como mau, apesar de ser bom.

O que quero provar com isso? Que independente do rótulo que aplicarmos aos outros, a real natureza do indivíduo é definida em uma outra esfera, livre de qualquer julgamento tendencioso dos pobres homens, que falham mais do que acertam.

Assim, voltemos ao caso do humilde e do arrogante. O homem humilde que aponta ao arrogante o que considera seu erro, a arrogância, pode ser um de dois tipos:

- O humilde, na verdade, é um arrogante em si, e suas palavras servem apenas para alimentar seu gigantesco ego, sentindo-se superior aos espíritos inferiores, incapazes de enxergar o verdadeiro caminho e se tornarem humildes, coisa que ele mesmo não o é, ironia da vida.
- O humilde realmente é humilde. É bem verdade que hoje em dia temos um conceito distorcido da verdadeira humildade. Apesar da raiz muito parecida, humildade não significa apenas se humilhar perante os outros. O humilde é aquele que procura fazer o que é correto a seu ver e não fica se vangloriando disso ou procura oportunidades de demonstrá-lo. Nosso homem humilde, que apontou a arrogância do arrogante, queria apenas fazer o que acreditava ser certo, mostrando-lhe sua falha e esperando que ele melhorasse. Com isso, não queria que o vissem como humilde e melhor, mas apenas que o outro vivesse como ele e fosse feliz como certamente só um humilde pode ser.

É bem verdade que há grandes chances de que o homem que aponta a arrogância do arrogante seja apenas mais um arrogante. Contudo, a combinação das virtudes da humildade e da bondade não é de todo rara, em verdade, é comum quando se consegue encontrar uma, a muito custo no mundo de seis bilhões e meio de sombras, encontra-se logo a outra, de mãos dadas, dentro do mesmo ser.

O humilde procura viver na verdade, e não perder tempo tentando convencer os outros de suas capacidades. Para o humilde, agir é mais importante do que certificar sua ação perante olhos estranhos.

Não espero que vós, membros do júri, concordem comigo, pois o discurso do arrogante é de uma beleza ímpar. Espero apenas que ouçam minhas palavras e carreguem-nas consigo, julgando interiormente quais destas atitudes, a humildade ou a arrogância, serve-lhes melhor.

Quanto a mim, gostaria de seguir minha vida humilde, pois assim sou feliz. Se quiserem, expôrei minhas opiniões sobre o que me pedirem e sempre fornecei a ajuda que me requisitarem. Contudo, se for da sua vontade não trocar outra palavra comigo, que assim seja, posto que vós deveis pensar no que será melhor para vós mesmos, dado que Deus, o Criador do céu e da terra, dotou a todos nós de inteligência e sabedoria suficiente para usar de nosso livre-arbítrio do modo que acharmos mais justo.

Em silêncio, aguardo sua decisão."

[Realmente complicado, isso. Agir como oposto. Mas foi até divertido. Só não acredito que está à altura do meu colega e opositor, # 0, da Troubleshooter S/A .]

domingo, 18 de março de 2007

O Quinto Filho

[Sim, eu sei, uma semana e um dia atrasado. Acontece. Minhas desculpas, minha dezena de leitores.]

Bem, eu tenho quinze temas armazenados para posts no meu computador. Alguns bem desenvolvidos, outros ainda em fase de preparação, mas, no geral, temas interessantes, ao meu ver. Contudo, eu aprecio muito a aleatoriedade, o acontecimento de um evento inesperado, e gosto de utilizar esse eventos.


Pois muito bem, eis que eu estava sentado na faculdade, assistindo a aula de Cálculo III, quando olho para o garoto sentado ao meu lado. Um garoto normal, que muito pouco ou nada interessaria a uma pessoa qualquer, exceto por um detalhe que realmente me chamou a atenção, embora eu não seja jamais parâmetro para pensar em pessoas normais, e me orgulho disso.

A característica que me chamou a atenção não era sequer do garoto em si, e sim, do estojo dele, de cor preta e com algo escrito, como um desses que você encontra em cima das carteiras verdes dos meninos do primário. Por algum motivo, o que tava escrito ali capturou meu pensamento.

ISSACHAR

ISSACHAR IS A RAWBONED DONKEY L-
YING DOWN BETWEEN TWO SADDLEBAGS

Da forma que foram colocadas no estojo, ficavam as palavras organizadas em duas linhas bem alinhadas, onde o hífen coincidia com o 's' final de "saddlebags". Uma tradução livre do que aí está seria "Issacar é um burro forte sentado entre dois fardos", é claro, transladando o significado, e não as palavras em si, que é melhor que se passe o significado em palavras próprias da língua receptora do que traduzir tudo ao pé-da-letra e ficar com uma frase sem o mesmo impacto no leitor da versão traduzida do que teria no leitor da versão original.

Quem é Issachar? Por quê um "rawboned donkey"? Que frase é essa, pra estar num estojo?

E isso me martelou e há quinze minutos, no meio de todas as inutilidades da Wikipedia, eu lembrei de procurar. E descobri que já tinha lido sobre Issacar, em português, há alguns meses, quando li o primeiro livro dos setenta e dois. Gênesis.

Issacar é o quinto filho de Jacó e essa é a frase que Jacó usa para profetizar sobre o futuro do filho e da descendência do mesmo, na forma da tribo de Issacar, uma das doze componentes da Monarquia Unificada e, mais tarde, uma das dez do Reino de Israel.

E qual era o real significado disso? Ninguém ficaria feliz de ser chamado de burro... então, por quê isso era bom para Issacar?

Pesquisando e pensando mais um pouco, acredito que compreendi o agouro do pai. Um bom agouro, na verdade. Um burro é um animal que trabalha nas situações mais extenuantes, carregando pesados fardos, sem reclamar. Contudo, é também um animal 'sensato', que entende seus limites e compreende a situação em que se encontra. Por isso, no momento em que se vê enredado em um trabalho além da sua capacidade, um peso acima do seu limite ou um caminho que leva à ruína, o burro decide que o melhor a fazer é simplesmente sentar e ficar parado no mesmo lugar.

Jacó, assim, quis dizer que Issacar e seus descendentes seriam trabalhadores fiéis, para quem não haveria tempo ruim. Porém, eles saberiam a hora de parar e largar os dois fardos que deveriam carregar, entendo que isso não levaria jamais a um bom resultado.

O que isso tem a ver com qualquer coisa? Nada. Só achei interessante.

sábado, 3 de março de 2007

A Causa Secreta

Televisão - American Idol: o caso Simon

O título é referência a um conto de Machado de Assis, lido há algum tempo e relido ainda ontem. E é talvez essa causa secreta que anime os fãs de Simon, o jurado cruel do American Idol.

Para quem não o conhece, ou só ouviu falar de leve sobre, Simon é, como dito, um dos quatro jurados do American Idol, programa destinado a procurar, surpreendentemente, o próximo ídolo estadunidense.

Para isso, existem as preleções, fase onde os jurados visitam certas grandes cidades em certas regiões dos Estados Unidos, e agüentam horas e horas e apresentações de bons cantores [raríssimos], cantores razoáveis [bem incomum], cantores excelentes [só vi dois, mas valeram a pena] e cantores medíocres, se é que se pode chamar de canto a performance deles [mais comum do que Caterpie na Floresta de Viridian].

Uma pessoa comum, eu, você, o jornaleiro ou Roberto Justus, não, esse último não, Roberto Justus é um alienígena incapaz de duas coisas, modéstia e expressão facial, mas, continuando, alguém normal acreditaria que essas horas de tortura transformariam um jurado no demônio de Fausto.

Contudo, não é por isso que Simon é de uma crueldade e falta de eufemismos ímpar. Não o conheço a ponto de fazer um julgamento totalmente acurado, mas penso que este homem acredita que a verdade deve ser dita, doa a quem doer, e ignorem-se as lamúrias, os choros, as injúrias. Se alguém é péssimo cantor, que isso seja dito de uma só vez, sem enrolação, sem passar a mão pela cabeça do coitado e dar um doce, como se isso fosse compensar a falta de qualquer habilidade nessa área invejável.

Claramente, ele se diverte fazendo isso um pouco mais do que é socialmente aceito, mas não é o prazer dele que me importa agora. É o dos telespectadores desse programa, aqueles que em casa ligam dia após dia no People+Art tão somente para se deleitar com os comentários da língua ferina do Simon.

Já dizia a vó de alguém, "pimenta no olhos dos outros é refresco". Como é de praxe, os ditos populares não são populares à toa - de fato, eles fazem algum sentido. E esse, em especial, é diretamente ligado ao nosso assunto.

QUem assiste American Idol dificilmente quer escutar alguém que canta bem, mesmo porque, assim como eu e outros bilhões de mortais, a maioria esmagadora dos telespectadores sabe avaliar uma voz tanto quanto diferenciar uma borboleta macho de uma borboleta fêmea. Eu, pelo menos, não sei.

Dessa forma, o que interessa são os candidatos bizarros, pessoas que se fazem ridículas, cantando mal e se apresentando de maneira ainda pior, contrariando uma possível lei da humanidade que diria que nada pode ser pior do que a voz da referida pessoa.

E aí que nosso amigo, ou melhor, amigo da onça, Simon entra. Ele é o catalisador de todos os pensamentos malvados e cruéis que perpassam nossa mente.

O prazer quase obsceno causado pela dor dos outros, essa é a razão secreta, algo que, para o espanto de quase ninguém que tenha mais de dez anos e que já tenha passado por situações humilhantes na escola, movimenta boa parcela dos seres humanos. E talvez aqueles babacas sádicos que procurar qualquer oportunidade para importunar quem quer que seja. Mas, com certeza, é a força por trás do criador das pegadinhas do "Topa Tudo por Dinheiro".

[PS: Façamos assim... segundas, quartas e sextas, visitem a Troubleshooter S/A. Nos sábados, venham ao Oroborosai.]