terça-feira, 24 de abril de 2007

A Palavra Final

Aqip,

A verdade é que é mais fácil escrever as coisas do que falá-las. Acredito eu que isso se deve ao fato de que uma vez escrito, ainda é possível apagar o que ali foi anotado com lápis ou rasgar o que está marcado à caneta.
Contudo, palavras ditas não podem ser abafadas nunca mais. Com sorte, o alvo da sua maledicência ou da sua imprudência estava distraído no exato momento, acaso da sorte ou da vontade de algo maior, não sei, e você não sofrerá as conseqüências. Mas elas continuarão a soar dentro da sua cabeça e você se torturará, perguntando-se de noite, sozinho, sem ninguém para lhe pertubar a conversa com o seu demônio, por que não usou uma voz mais firme, por que não disse de outra forma, por que sequer falou aquilo.
Enfim, começo admitindo que estava errado quando julguei de primeira Caius. Pensei que era uma boa alma, isso conta a meu favor, mas que era também simplório, incapaz de qualquer pensamento além de sua esfera mundana.
Transcrevo, pois, a conversa que tive com ele durante a colheita do trigo. Conversa por assim dizer, que foi mais um monólogo, uma palestra que devo me recordar. Assim se seguiu:
Caius subiu na carroça, conferiu a ordem de suas ferramentas e esperou calmamente enquanto eu, com certo desajeito, me posicionava ao seu lado. Balançou de leve as rédeas que tinha nas mãos e o cavalo, muito bonito e bem cuidado, pelo menos, até onde eu entendo de cavalos, que é nada ou quase nada, mas que se pode fazer, se eu só montara em um desses há um ano, mas fora uma experiência agradável, realmente, sentira-me senhor de terras em cima daquele animal de passo contado.
Enfim, por uns cinco minutos nada dissemos um ao outro que não perguntas casuais sem importância, dormiu bem?, sim, não, por quê?, é a velha dor nas costas que levo comigo desde criança, quando ainda sentia a dor dos meus ossos crescendo deitado ao lado de minha mãe, como se chamava, Megara, nome único, sim, único, e por assim ia.
Foi quando Caius vagarosamente apanhou algo que lembrava muito um retângulo de papel, apanhou um pouco de uma graminha amassada, de cor verde-escura, uma cor bonita, que lembra a do verso das folhas das árvores grandes das ruas da minha cidade, e como se fosse gesto natural, como levantar, comer e dormir, pôs-se ele a enrolar o quadrângulo de papel em torno do matinho uniformemente distribuído, regularmente só pela experiência de saber quando devia por em cada centímetro medido, acho eu.
Admirado por aquele processo, demorei ainda uns segundos até conseguir formular a pergunta que me insidiu de início.
- Caius, que é isso que está a fazer?
- Oh, isso, amigo urbano, é um cigarro. Um cigarro feito à mão, da folha do tabaco do quintal lá de minha primeira casa, que minha avó e avó dela plantaram para mascar enquanto os homens iam à guerra com os teutões e elas ficavam a guerrear com os espíritos maus da noite, que lhes tentavam a paciência e o desejo.
- Um cigarro? De tabaco? - fiz eu as perguntas, como se fosse criança, não, não criança, posto que criança aprende as coisas rápido, mas como se fosse um ancião tresloucado, sem ciência do porquê do mundo girar nem da natureza dos homens.
- Sim - respondeu-me Caius, com um sorriso estranho no rosto, lembrava-me ao mesmo tempo a melancolia e a sabedoria, às vezes, vai que as duas caminham juntas, braço de uma por sobre o ombro da outra - um cigarro de tabaco. Para fumar, sabe?
- Mas, Caius, não sabe você que o cigarro cau-
A expressão de meu anfitrião tornara-se naquele instante séria e decidida, como se soubesse, e obviamente sabia, o que eu estava pensando e que iria dizer.
- Tomas-me por tolo ou por insano? É mais do que evidente que sei o que o cigarro causa. Sei também como manejar uma xiphos ou um kadesh, assim como a enxada e o rastelo, sei o tempo que leva para que o trigo possa ser debulhado, sei o cheiro de minha mulher Lutia e sei quando ela está me escondendo algo, sei o nome de cada estrela da constelação que cabe à minha família e sei que vou morrer.
A maneira com que ele disse a última palavra, "morrer", foi tão significativa que fiquei sem reação. Enquanto isso, Caius terminou de enrolar o fumo, levou-o a boca, mas sem atear-lhe fogo, disse-me ainda:
- Todo homem morrerá e não será diferente com você. Eu hei de tombar e me transformar no próprio alimento dos meus filhos, assim como minha avó faz hoje parte de todas as casas dessa vila, pois que faz mais de trinta anos que ela se uniu com a terra que lhe pariu um dia. A morte segue cada um desde o dia em que nasce o rebento, não como um predador à espera do prêmio, mas por curiosidade, pra saber como foi o seu contrário, a vida, que não lhe é inimiga, apenas incompatível. Todos sofrem com o temor de deixar de existir num dado momento, sem aviso, sem saber o que lhe espera.
Nesse instante, Caius tirou o cigarro da boca e ficou olhando para ele por algum tempo.
- Sabe, forasteiro, qual a diferença entre essa égua que nos leva e eu que contigo converso? - como disse antes, minha ignorância sobre equinos era completa, no final das contas, era uma égua, e não um cavalo - A diferença é que esta égua se contenta com a vida que levará e não terá reação de surpresa alguma quando se prostar por falta de forças. Já eu, eu não quero que seja assim. Por isso, decidi que morrerei da forma que quero, e essa forma é esse cigarro. Não serei levado por nada que não tenha sido causado por mim próprio. E pouco me importa se isso é ou não o plano do divino ou do profano, a escolha foi feita, afinal, por mim, que sou senhor de minha vida e de minha morte.
Não falamos mais nisso durante todo o resto do dia, mas cada palavra que ele disse me marcaram. Bem, não sei se foram exatamente essas que transcrevi, mas acredito que elas transmitem a mesma sensação que me dominou por horas a fio.
Devo ir agora. Vejo a lua do lado de fora da janela de meu quarto de hóspede. Um outro dia, escrevo eu.

quarta-feira, 18 de abril de 2007

Novos Aires

Aqip,

Foi uma viagem um tanto quanto estranha. A partir do ponto onde parei na primeira missiva, eu juntei tudo o que precisava para viajar, abri a porta, andei alguns passos e olhei para trás. Não sei, alguma coisa parecia me chamar dali de dentro. Foi como se a minha casa tivesse tomado vida e ela se mostrasse como um lugar de onde eu não deveria sair. Uma proteção completa que eu estava abandonando no segundo posterior àquele em que eu batia o portão.
Talvez fosse simplesmente medo do desconhecido, não sei. A verdade é que eu fiquei parado por um minuto, talvez mais, de costas para minha casa, olhando para a rua e o vento que soprava ali não era de todo diferente do vento lento a navegar sobre as águas do Estige...
Andei por uns minutos, descendo pelo caminho, pensando nas coisas que ficavam aqui enquanto eu partia, e senti um certo apelo por ficar. Porém, eu saíra pela Porta das Decisões, e isso não me permitiria mudar de idéia.
Resolvi seguir as direções que me foram dadas. São muito simples, mas, ao mesmo, tempo, complicadas de serem realizadas, por exigirem uma capacidade de mudança de linha de pensamento e de interrupção das mesmas um pouco avançada. Passei minhas últimas duas semanas treinando isso da maneira que podia, antes de dormir, olhando para o teto, que é a hora em que as coisas mortas se misturam às vivas em um reino sem limites definidos, mas com regras existentes, ainda que incompreensíveis.
Uma vez realizadas [se quiserem, escrevo outra vez explicitando-as], de alguma forma, encontrei-me numa via de terra entre dois muros muito longos, de pedras angulosas e pesadas, cobertas de musgo. O caminho já tinha sido utilizado várias e várias vezes, mas não encontrei ninguém em trânsito ali. Andei por um tempo até que me vi no alto de um montículo, com uma visão clara para o que eu acreditei ser na hora o meu destino: um vilarejo de pouco mais de uma centena e meia de habitantes, com casas e construções dispostas em semicírculo, todas bem organizadas.
Desci pela esquerda do morro, menos utilizado, ladeado por grama baixa e algumas árvores de folhagem escassa. Andei por uns 400 ou 500 metros, até que um homem que estava à frente de uma carroça, levando um pouco do que parecia ser trigo em direção ao centro da aldeia, avistou-me, deu meia-volta e veio ao meu encontro.
Não repito o diálogo aqui porque quase sempre conversas introdutórias são enfadonhas. O nome do homem era Caius, com us mesmo, e ele devia ter uns trinta anos de idade. Não me perguntou de onde eu vinha ou qual era a minha missão naquela terra, apenas me convidou para jantar com sua família. Ele também me contou que a vila fora fundada há alguns meses e prosperava de maneira ostensiva.
Não pude observar muita coisa da aldeia porque a casa de Caius e de sua mulher, Lutia, ficava à entrada da vila, sendo ele o responsável pela colheita do trigo, segundo me contou, mas consegui ver um grande armazém onde eram estocadas coisas diversas, um granário para o trigo, suponho, e um edifício que aparentava ser o centro da vida que amansava dado que estávamos já quase no plenilúnio.
Estranhamente, porque eu senti que pouco andara, estava exausto e foi de imediato que dormi ao deitar na cama. Acho que permaneci desacordado por umas dez horas, ou mais, até que Lutia me chamou na manhã de hoje.
Vou acompanhar Caius na sua colheita da tarde. Pedi que ele me explicasse algumas coisas sobre a vila e ele me disse que no caminho, nós conversaríamos.
Ainda não sei como enviar esta carta. Caius disse que eu só precisava deixá-la com Lutia, que ela se encarregaria do resto. Pra falar a verdade, é um alívio que eu só tenha pouco pra escrever. Acho que me desacostumei e minha mão já estava incomodando.

Saudações,

terça-feira, 17 de abril de 2007

Carta de Partida

A quem interessar possa,

Existe uma boa razão para eu ter deixado de escrever coisas aqui nas últimas semanas. É um motivo, admito, um pouco fraco, mas não é tão tíbio a ponto de não merecer ser mencionado. A questão é que eu estava a me preparar para uma viagem um pouco longa.
Embora eu só tenha decidido o destino há poucas horas, sinto-me confiante pra partir, posto que viagens cujos rumos foram decididos nos últimos segundos costumam ser mais proveitosas do que aquelas muito planejadas, já que se parte sem saber direito aonde se chegará, sem criar expectativas grandes demais ou iludir-se com espetáculos de marionetes e manequins nas televisões e nos pôsteres.
De fato, eu já queria viajar desde o começo deste mês, só não sabia como fazê-lo e aonde ir. Os dois problemas principais resolvidos, restava-me apenas os preparativos óbvios para esse tipo de empreitada e tocar para a estrada, munido do que pudesse me ajudar e me manter bem, como livros e meios de escrever, visto que sou um que precisa dos livros, com o estilo de escrita de quem já se foi e de quem é, e de cadernos, para deixar marca do enxame de pensamentos que poucos ousam capturar em uma finas folhas de papel, visto que são como fogo, que não importa o momento, marcam e ferem de modo permanente.
Então, é isso. Escrevo outra vez quando chegar em meu destino. O fato é que o lugar é perto e longe ao mesmo tempo. Então, não sei quanto tempo demoro em rota.
Como foi que disse ele mesmo? "O que importa é a viagem, e não o destino"? Que seja assim, então. Ouvi dizer que é uma terra diferente da nossa pra onde vou, um lugar onde conceitos filosóficos modernos não chegarão jamais a ser explorados. A saber.
Até a próxima,