terça-feira, 29 de maio de 2007

Uma Faca no Escuro

Aqip,

Parece que fazem meses que eu não escrevo. Não devido ao tempo em que fiquei sem escrever, mas por causa dos eventos que ocasionaram isto. Confesso que estou mais abalado do que achei que deveria estar, mas não há o que se fazer, eventos inesperados provocam reações inesperadas. Esta aí uma citação que eu não quero que façam minha.
Poucos dias após nossa visita à casa do residente, eu acordei com uma sensação estranha. Talvez vocês não a conheçam, mas a identifiquei como sendo aquela característica dos que não estão no lugar certo. Já se passou mais de um mês desde que eu cheguei a esta vila e tenho vivido como se não tivesse mais nada que fazer exceto aproveitar a hospitalidade de Caius e Lutia.
De fato, parando pra pensar agora, nem sequer perguntei por que eles me abrigaram de uma forma tão acolhedora, sendo eu um estranho completo, ou ainda, um forasteiro desprovido de qualquer interesse em especial. Talvez haja mais neles do que os olhos podem enxergar. Ou em mim, não sei.
Em vez de acompanhar Caius para a colheita, resolvi ficar na casa, conversando com Lutia. Ela me contou que tinha três irmãos, dois mais velhos e um mais novo, e uma outra irmã, mais nova. Os nomes deles ela me disse, mas sinceramente, não estava tão atento a ponto de lembrar-me agora.
Também me contou como ocorrera o casamento com Caius. Para minha total surpresa, Caius também era um forasteiro, disse-me Lutia sorrindo, um homem forte e sorridente que um belo dia apareceu caminhando pelos campos, parou na casa do pai dela e pediu trabalho. Eles logo se enamoraram e, após alguns anos, ambos partiram para fundar uma nova vila junto com alguns pioneiros, como era tradição de seu povo.
Perguntei a ela se era tradição acolher forasteiros entre eles e ela me explicou, com um sorriso esguio, que tradição, exatamente, não era, mas que éramos, nós, os forasteiros, tão raros que quando aparecia um, eles faziam de tudo para tratá-los adequadamente.
Comemos e aprendi mais sobre o vilarejo e seus habitantes. Descobri, pois, que o fluxo de migrantes era contínuo e quanto maior a vila, mais gente vinha, num processo cíclico, até que parte deixava suas casas para fundar uma nova vila, sob o comando de um subresidente, designado pelo residente da vila. Soube, pelos lábios dela, que se comprimiram de uma forma expressiva, apesar da voz negar, que a impressão que o residente lhe causava era mista de poder e repulsa. Sentimentos comuns, acho, para aquele tipo de pessoa. Por um segundo, talvez por maliciosidade, pensei ter visto um esgar de descontrole sobre si mesma, como se não fosse possível reprimir um sentimento de força máxima. Amor ou ódio, acredito. Realmente, há mais nessa mulher do que os olhos enxergam.
O sol não tardou a se pôr e as primeiras estrelas surgiram. Não sei se notei isto antes, mas elas brilham com uma intensidade sem par nesse lugar, piscando às centenas, não, aos milhares. Sob o rumo das estrelas, mas sem lua, vimos os dois Caius chegar dos campos, balançando um alforje por sobre a cabeça. Este continha várias moedas finas de prata, com um brasão incrustado em um dos lados e uma efígie no outro. Soubesse eu mais de heráldica ou ainda de numismática, seria capaz de dizer qualquer coisa que não o que me contaram, que se chamam pratas, simplesmente.
Fomos dormir, mas não o sono dos justos. Durante o meio da noite, fui acordado por um barulho constante. Parecia ser uma espécie de música, um compasso marcado que ia crescendo pouco a pouco, mas permanecia muito, muito baixo. Depois de algum tempo, de olhos bem fechados, tremendo de medo e incerto se estava acordado ou sonhando, consegui identificar parte do canto - "a marcha da noite não cessará, espadas e lanças, cavalos e escudos, a morte e a vida nos elevará, os oito devem ser respeitados, encontrados, saqueados e adorados...".
Fiquei hipinotizado, acho, por minutos sem fim, até que levantei-me assustado, compreendendo que aquelas não me eram vozes familiares e parecia uma canção de guerra. Abri minha porta rapidamente, apenas para ser empurrado pra dentro, com minha boca tapada pela mão de Lutia, um olhar tão sério que me desarmou e não tive outra reação que não sentar ao chão e esperar as palavras dela.
Cale-se, disse-me, cale-se ou todos morreremos. Fique quieto no seu quarto e não saia, não importa o quê. Caius e os outros já estão cuidando disso. O Herói foi convocado, mas só chegará daqui alguns dias. Assenti com a cabeça e esperei cinco minutos do momento em que ela fechou a porta. Então, abri-a vagarosamente e, pé ante pé, andei o corredor de madeira e desci a escada colado à parede, para não fazer barulho. Agachado, abri a porta de entrada cuidadosamente, de modo a fazer o menor barulho possível e congelei por duas vezes, quando achei ter escutado vozes próximas demais.
Olhei pra fora e, iluminados pela luz das estrelas e do céu sem lua, estavam vários homens, soldados armados de espadas e escudos, com três homens montados em cavalos marrons. Embora esses pareciam mais aptos a guerrear, o capitão aparentava ser um homem que estava quase trajado como os outros da infantaria, exceto pelas cor preta de sua capa, contrastando com o vermelho da capa dos outros, e armadura e espada mais brilhantes.
Procurei com os olhos, sem me mover, o quartel dos legionários da vila e o que testemunhei não poderia ser recriado em cem anos pela minha imaginação... os soldados inimigos rodeavam dois cadáveres, despidos completamente, as armas e armaduras banhadas em sangue. As cabeças deles eram jogadas de mão em mão, chutadas e pisoteadas, cuspe e urina por toda a face. Os olhos e as línguas haviam sido arrancados, trespassados por lança e estacados no coração dos corpos.
Fechei a porta e, rastejando, voltei para meu quarto, apertei os olhos, para fazer com que aquelas imagens terríveis desaparecessem e passei o resto da noite empapado em suor e lágrimas, amaldiçoando minha incapacidade de lidar com a crueldade daqueles homens. Sem mais agüentar, levantei-me derrotado, sentei à minha cadeira, acendi uma vela e resolvi, por fim, escrever essa carta e deixar registradas a minha covardia e a minha vergonha.

Saudações,

Um comentário:

Anônimo disse...

muito bom. mesmo. apesar de, sei lá, eu ter levado um susto nestes últimos parágrafos no qual o personagem encontra os cavaleiros.