sábado, 27 de outubro de 2007

Palavras

... Não, não posso me juntar a vocês. Ao menos, não da forma que vocês são. Entendam, nossos mundos fazem parte da mesma esfera, mas são bem separados por um longo caminho, possível de ser reduzido a nada, claro, somente por quem tem essa disposição.

Para eles, tudo pode ser traduzido com o corpo e, para vocês, com o som. Enqüanto para eles todo som é movimento, para vocês, todo movimento é som, mas para mim, todo som e todo movimento são palavras que surgem espontâneamente no vazio negrume da minha mente e flutuam ali, brancas, ritmadas, tão brilhantes que tenho que piscar uma, duas vezes com meu olho interno para enxergá-las bem.

A melodia que os toca, essa que flui tão naturalmente que faz parecer que vocês são feitos de notas, de lás, de sis ou de fás, membros de uma longa e antiga fraternidade daqueles que se dedicam aos acordes, a essas vibrações misteriosas que domam o indócil vento e agintam o orvalho sereno, é tão misteriosa pra mim, tão incompreensível quanto o é esse títere oculto nas sombras que puxa suas cordas, com tanto vigor e tanta sutileza, forçando-os a se movimentar como bonecos de trapos, mas bonecos de trapos com vontade própria, um embate animalesco entre ímpeto e controle, a técnica e os instinto se alternando tão ferozmente que, ao final, a exaustão derruba os corpos e desmonta o palco.

Meu mundo é o das palavras, mas não sou senhor delas. Sou senhor dos meus sonhos e da minha sorte até que elas me dominem e me ordenem, imperativamente, que lhes escreva, que lhes torne realidade. Uma mente bifásica, filhos do som, é a minha, controlada pelos números e pelas palavras. Enganam-se se acreditam que os números são mestres severos e as palavras, doces musas, enganam-se como eu me enganei quando escolhi as duas regências antes de ser nesse mundo.

Os números, filhas da flauta e do tambor, são calmos e objetivos e cumprem tão somente seus desígnios. Eles traduzem tudo que existe nesse mundo, até mesmo suas canções, tão exatamente que não me resta margem para qualquer dúvida, somente tenho que andar pela senda da lógica, sem temores, sem excessos, nada. O mesmo ar nós respiramos e, embora não possa moldá-lo como vocês, posso determiná-lo. Até mesmo o instrumento dos filhos de Adão e Eva, os filhos do barro, posso medir e calcular sem esforço. Apenas tenho que abrir bem os olhos e ler os números.

Sinto não poder conter uma risada nervosa e algo patética, mas é que a grande rede que me prende e sufoca está exatamente em todo o poder dos números. Cada palavra que nós escrevemos também pode ser denotada por eles, sem exceção. E é pensando assim que as palavras sussurram, não, elas não sussuram, elas não produzem som, elas simplesmente surgem, vagando, sempre o branco contra o escuro do resto da minha mente, e elas se organizam em uma fila bem clara, uma pergunta apenas, algo que me faz acordar no meio da noite, escravo delas, e ficar pensando, e pensando até que meu corpo as derrote e eu durma... "Mas nós não pertencemos apenas a esse mundo, não é mesmo?"...

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