quarta-feira, 3 de janeiro de 2007

A Criança e o Velho

- Eu não bebo. Beber é ruim. Deixa as pessoas fora de si. E ficar fora de si é ruim. Porque se fosse pra ficar fora de si, então você não era você mesmo. Era você fora de si.
- Então, decerto tomou café demais.
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Eu não tomei café hoje. Não, tomei de manhã. Café com leite. Eu gosto bastante de tomar café com leite de manhã. Mas só tomo quando estou em Petrópolis. E gosto de tomar na velocidade certa. Não gosto que me apressem. Não acho que café da manhã seja algo que deva ser apressado. Acho que nada deveria ser apressado. As coisas têm uma velocidade normal. Normal é porque é normal. Se não é normal, então deveria ser. Normal é certo. Não é normal, não é certo. A velocidade certa é a normal. Normal, normal. Você deve estar estranhando. Eu ia achar estranho se você começasse a escrever desse jeito de repente. Mas eu gosto. É diferente. Acho que nunca escrevi assim. Não, acho que nunca. Você já escreveu assim? É divertido.
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Não creio que tenha escrito assim alguma vez, e se de fato assim escrevi, de forma alguma apreciei. Tanto é que nem lembro-me. Decerto, você está encarnando um personagem em seu modo de escrever, o que parece ser divertido. Porém, pergunto-me se isso é apenas em minha janela ou se você assim está com todos em sua lista de contatos.
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Só estou falando com você. E escrevendo um e-mail. E estou escrevendo um e-mail assim também. E você me assustou. Porque parece que a pessoa pra quem eu estou escrevendo um e-mail não vai gostar. E eu não quero que ela não goste. Eu gosto dela. Você escreveu como gente séria. Gente séria escreve as coisas séria. E não gosto de escrever as coisas sério. Eu só escrevo as coisas sério quando estou de mal humor. Eu gosto de escrever as coisas sorrindo. É porque eu gosto de escrever. Eu tô ficando assustado comigo mesmo. É estranho ler o que eu acabei de escrever. Parece até outra pessoa escrevendo. Mas eu gosto. De alguma forma. Eu não sei explicar. Tem coisas que não dá pra explicar. Quando eu era pequeno, eu gostava da palavra culpa. Ela tinha um som engraçado. Ainda tem. Ela não mudou. E gostava de ficar pensando a culpa é da culpa. A minha vó dizia isso quando eu e meu irmão brigávamos. Dizia que a culpa não era de ninguém, era da culpa. Eu gostava disso. Era ela que falava ou eu que pensava? Eu não lembro direito.
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Se você escreve sorrindo é algo que diz respeito apenas aos seus musculos faciais, pois de modo algum posso vê-lo sorrindo enquanto escreve, tampouco posso ver as palavras sorrindo. Presumo que esteja escrevendo esse e-mail à sua respectiva , não? Àquela em que você deposita seus pensamentos e sentimentos, a quem você encomendará seus últimos pensamentos caso morra de forma trágica. Acabo de começar a encarnar o meu personagem, alguém que sempre com raiva escreve e por isso escreve com discurso empolado. Embora obviamente não seja nada comparado ao seu frenesi estilistico.
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Eu percebi. Você tá com raiva da forma que eu tô escrevendo. Você quer que eu pare? Eu não vou conseguir parar. Eu posso voltar a falar com você amanhã. Vai parar quando eu dormir, eu acho. Eu vou dormir mais tarde. Eu gosto de dormir mais tarde quando estou aqui. Você me lembrou o estilo do Machado de Assis. Ele é legal. Eu gosto dos livros deles. Não sei por que as outras pessoas não gostam. Aliás, sei. Elas não gostam porque é pesado. Mas é legal. É diferente. Ele era inteligente. Muito inteligente.
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De forma alguma estou com raiva de você, meu nobre colega, apenas resolvi encarnar um personagem oposto àquele que você incorporou nessa noite. Algo oposto de todo , porém sem ser adversário nem inimigo. No fim, apenas um exercício estilístico.
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Eu não gosto dessa forma que você escreve. Você escreve como se estivesse rasgando o papel. O papel é bonzinho. Ele não quer ser rasgado. Ele fica triste. Agora eu me assustei de verdade. Essa mensagem foi estranha de verdade. Estou regredindo ainda mais, não estou? Pareço que estou. É estranho. Mas eu gosto.
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Escrevo minhas palavras em pergaminhos amassados pelo tempo, com pena e tinta, guiado pelo lumiar do meu fiel candeeiro noturno que me orienta nas madrugadas solenes enquanto me dedico aos meus passatempos reprimíveis. Escrevo como quem talha um bloco de pedra desejando ao mesmo tempo que suas palavras sejam guardadas para sempre e que jamais sejam apagadas intencionalmente por ninguém.
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Eu acho que você acha que eu estou forçando esse estilo. Não estou. É estranho. Eu acho que não consigo escrever de outra forma. Mentira. Consigo, sim. Mas vai sair artificial. E isso é ruim. Tem que ser natural. Tem que fluir. Fluir, fluir. Eu gostava de fazer barquinhos de papel. Gostava de jogá-los no rio. Imaginava uma corrida mundial, e o meu barquinho ultrapassava as folhas e as pedras.
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Mas escolho precipitadamente minha tabula rasa, escolho uma muito fraca de constituição frágil que não suporta o peso do que se escreve. Não acho que esteja forçando. EU estou.
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Você é velho. Muito velho. Você é o tempo? Não. O tempo não é velho. As pessoas acham que o tempo é velho. Mas ele não é, não. Ele é uma criança. Ele gosta de brincar. Ele brinca com as coisas. Não é estranho forçar o estilo? Eu acho estranho. Eu não gosto. Eu canso.
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O tempo não tem tempo. O tempo precede o tempo. Apenas nos cansamos daquilo que não estamos acostumados a fazer. Quando nos acostumamos, sai fluente como se sempre estivéssemos propostos a fazê-lo.
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Não acho. Acho que cansamos do que é chato. Forçar o estilo é chato. Muito chato. É mais chato do que esperar sua mensagem chegar. Demora muito pra sua mensagem chegar. Queria poder ler ela logo. Você escreve devagar? Não, acho que demora pouco em relação aos outros. O tempo é engraçado. As pessoas têm medo dele. As pessoas têm medo de um monte de coisas. Um montão. Por que as pessoas vivem com medo? Elas deviam gostar de viver. Elas têm medo de viver, por que têm medo de morrer?
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Acho que sua mente que faz com que a enxergue devagar com relação aos seus próprios pensamentos. A diferença básica entre nossos estilos eleitos é que você se dedica ao curso fluente do pensar enquanto eu me detenho algumas linhas sobre um momento.
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Pensar como criança traz perguntas interessantes. Eu gostei dessa última mensagem. Ela saiu como algo que eu não escreveria normalmente. Eu não escrevo assim. Mas ficou bom. Você gostou?
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As pessoas têm medo sobre não ter medo. Acham que para viver suas vidas de forma medíocre (que é a melhor para elas, de todo modo), precisam temer algo, mesmo que não entendam o que temem.
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Você gosta de escolher as palavras? Eu gosto de escolher as palavras. Eu não estou escolhendo-as agora, mas eu gosto. Eu gosto de usar palavras bonitas. Têm palavras bonitas. Mas as pessoas não conhecem muitas palavras bonitas. Elas usam palavras chatas.
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Seu estilo de escrever me lembra dos loucos que não conseguem estruturar nem a si mesmos nem ao que falam.
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Medíocre. Medíocre. Eu não gosto de medíocre. Eu não gosto de mediano. É ruim.
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Sempre escolho as palavras, mas, faço isso em tempo muito reduzido sendo que faço de modo a que ninguém percebe.
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Eu sou Delírio. Dos Perpétuos. Eu gosto dela. Mas não gosto mais dela do que do Destino. E gosto da Desespero. Ela é um bom personagem. E bem descrito. E bem desenhado. Mas a Delírio tem o corpo de texto mais bem feito. É diferente. Ela fala como os loucos. As letras passam a impressão de que ela não pensa como as pessoas pensam.
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(É extremamente difícil escrever assim para quem não observa as normas gramaticais do Português, creia-me.)
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Eu acredito em você. Eu sempre acredito em você. Eu confio em você. Você é igual a mim. Não, você é semelhante a mim. Nós não somos iguais. Você é maior. É mais velho. Eu não sou grande. As pessoas dizem que eu sou grande, mas eu não sou. Eu sou pequeno. Eu não sou velho. Um garoto me disse semana passada que eu era velho quando eu perguntei se eu era velho ou novo. Eu achei estranho. Eu ri, mas achei estranho. Eu acho que prefiro ser novo. Você aprende mais coisas quando é novo do que quando é velho. Eu acho. Eu não sou velho, eu não sei.
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Mesmo sendo maior que eu, permanesce menor que eu, meu amiguinho. É um dos mistérios dessa coisa magnífica que apelidamos de vida. Essa coisa inominável que tentamos compreender a cada dia da existência, de nosso perpétuo enquanto dura aion. Acho que viraremos a noite, não? Não acredito que teremos tempo de dormir hoje.
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Eu acho. Eu não sei. Eu não tô com sono. Você tá com sono? Meu irmão vai brigar comigo. Vai dizer que eu fiz de propósito. E vai contar pra minha mãe. Mas eu não faço de propósito. Mentira. Às vezes, eu faço de propósito. Mas não é sempre. Eu gosta da vida. Você gosta da vida? Ela é legal. Ela é diferente. Mamãe disse que foi Papai do Céu que deu a vida pra gente. Papai do Céu sempre é legal comigo. Ele sempre me diz o quê eu tenho que fazer. Eu acho que ele gosta muito de mim. Você gosta do Papai do Céu? Eu gosto muito dele.
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Acho terrível essa denominação, pois assim presume-se que se ele é pai do céu, outra pessoa é pai da terra. Assim sendo, estamos todos nos enganando.

O som das palavras vai ficando cada vez mais distante, mais fraco... até que, por fim, só resta a dúvida se realmente aconteceu alguma coisa ou se foi apenas um sonho.

Cortesia do Troubleshooter #0, parte da Troubleshooter.com

Um comentário:

Unknown disse...

Lendo assim parece algo retirado dum livro.