domingo, 28 de janeiro de 2007

Capítulo Um

[De acordo com o acordo, meu post tem a ver com o dele. Na próxima, o dele vai ter que se ver com o meu, ou fica de castigo.]

Esse é o único texto que eu escrevi de que tenho realmente orgulho... mas perdi a inspiração porque fiquei tempo demais sem pensar nele. Acontece.

***

Capítulo I

O homem que morrera três vezes cruzava os portões maciços da cidade. Apenas corvos observavam a figura solene e imponente parada diante do portal principal, feito de mármore enegrecido pela poeira de séculos. Já fazia alguns ciclos desde a última vez que ele olhara para a estatueta envelhecida em forma de crânio de dragão que ornamentava a entrada do lugar muitas vezes amaldiçoado.

Contraiu nervosamente os dedos de sua mão esquerda. “Essa estátua continua aqui, como sempre. Como um sinal do que...”. Teve seu pensamento interrompido por um grito lacerante. Por reflexo, virou-se com a agilidade de um felino arisco, empunhando sua alabarda, ou o que restara dela, o cabo entortado por causa da batalha feroz contra uma estátua animada de um deus esquecido, o metal enferrujado de sangue de inocentes e de tiranos, o fio perdido há muito tempo.

Porém, como já esperava inconscientemente, não viu nada exceto a escuridão perversa, silenciosa como um caçador que espera pacientemente uma indecisão de sua presa. Não conteve um riso abafado. Riso o qual saiu com gosto amargo, sem alegria, mas com pesar. Não havia espaço para sentimentos nesse lugar.

Na verdade, não havia espaço para esse tipo de tolice em lugar algum. A diferença era que em qualquer outro local, isso poderia gerar uma humilhação. Aqui, as conseqüências iriam um pouco mais além do que um comum esperaria. Mas quem faz a visita pela terceira vez, já não é tão ingênuo. Ou feliz, segundo muitos.

Com um passo lento e arrastado, seguiu como um peão pelo tabuleiro de xadrez. Sempre avançando, na linha de frente, enfrentando o perigo e sendo sacrificado por quem tinha o poder. Uma peça cega. Dispensável. Como fora, por inúmeras vezes.

Todavia, isso já não mais importava. Na verdade, nunca importara. Nunca se dera o luxo de pensar em si como vítima. Era o que era porque queria, porque tinha que ser. Não havia tempo para refletir ou para divagar. Nunca fora forçado a seguir o rumo que escolheu quando pequeno. Sempre gostou de se ver como senhor de seu destino. Uma ilusão barata, mas eficaz.

Os olhos, acostumados com as tonalidades sombrias da noite, foram cegados pelos primeiros raios de luz da aurora. Daquele ponto já podia divisar a ruína da torre leste do palácio que dominava a paisagem da cidade. Olhava, mas não via. Sua mente ia longe, para tempos remotos onde ainda brincava munido de gravetos com seus amigos. Nunca havia parado para pensar sobre isso. Logo, esqueceu as memórias inúteis e seguiu em frente. Atrasar-se não seria visto com agrado.

Na verdade, cidade era mais uma forma de expressão do que uma atestação da realidade. Só havia uma moradia num raio de quilômetros, o palácio central. As ruas eram ladeadas por árvores que podiam muito bem ser consideradas mortas, pois não tinham folhas e a aparência seca e retorcida era impressionante. A um olhar mais atento, porém, mostravam sinais de que havia vida e, mais surpreendente ainda, consciência ali. Os galhos baixavam lentamente em direção ao caminho que se estendia até a entrada lateral da grande construção. Cada passo era precedido por estalos e silvos, que causavam uma péssima sensação de estar sendo vigiado.

Andando pelo caminho formado por pedras mal encaixadas, com mato acinzentado crescendo entre as junções, olhou para a linha do horizonte avermelhada pelo amanhecer pela primeira vez em algumas semanas. As viagens pelos túneis do sul eram enriquecedoras, porém sempre acarretavam males incômodos. “Cada entrada diminuía mais a distância em relação ao inevitável.” dizia uma velha canção que ouvira nos portos outrora iluminados de sua cidade natal.

A tênue luz da manhã já o irritava. Não só pela sensibilidade ampliada. Também contava o fato de lembrar-lhe a razão dele estar nesta H’ishmen. Como se atravessasse um sonho ruim, empurrou a pesada porta de carvalho e seguiu pelos salões principais do Uno. “Uno, nome ridículo” pensou, sem se importar com a possibilidade real de que percebessem o que passava por sua mente.

Seus passos ecoavam pelos aposentos à medida que os atravessava. Uma leve camada de poeira cobria os candelabros que iluminavam precariamente o caminho. O piso feito de um mosaico de materiais refinados de diferentes locais formava imagens de reis suntuosos e épocas gloriosas.

Ao dar por si, estava diante do segundo-ministro. Um dragão do ar que gostava de se apresentar como um velho encurvado de longos bigodes brancos, sem barba, com uma túnica impecavelmente alva. Consultando o velho relógio construído por encomenda a Primus, o Primeiro e o Único, este olhou-o com sagacidade jovial e perguntou o motivo do atraso inconveniente.

- Não me parece que algo de importância menor vem ao caso de um segundo-ministro, que dirá de um ex-servo de lordes macabros.

- A mesma descortesia de sempre, jovem petulante.

- A mesma enrolação de sempre, velho.

- De qualquer forma, entre que Ancar lhe aguarda.

Com um rápido movimento, o segundo-ministro girou a tranca da porta de mogno sólido e fez um sinal para que o guerreiro a sua frente entrasse. Nesse momento, sentiu um calafrio, como se algo estivesse para acontecer, o início de alguma coisa grande que estava por vir. Sendo uma pessoa fria e calculista, concentrou-se na sua função, ignorou completamente essa sensação ridícula e adiantou-se dois passos, abrindo caminho para que enfim a reunião começasse.

Em atitude veementemente ameaçadora, o guerreiro fez menção de alcançar sua alabarda, como se quisesse começar ali mesmo uma batalha. No entanto, como uma nuvem que, por instantes, cobre o sol e impede que se fique ofuscado, a razão dominou a mente de ambos e tanto o guerreiro como o segundo-ministro agiram como se esperava e entraram enfim no salão de conferências.

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Um comentário:

Unknown disse...

Ok, deal. Só que o ciclo postico do Shooter vai ficar meio confuso daqui a uns tempos... filhos pródigos que retornam a casa sabe...